João Capiberibe*
Pouco tempo antes de ser assassinado, Chico Mendes andando pela floresta do Acre, pára em frente a uma árvore de copaíba e explica ao meu amigo jornalista Elson Martins, que o acompanhava:
"Veja isso aqui: para os que não a conhecem trata-se de mais uma árvore a ser abatida em benefício da indústria madeireira. Mas para quem pensa de outro jeito, essa árvore pode oferecer muitos empregos, basta extrair sua seiva sem derrubá-la, claro! Pense num bálsamo poderoso! Plantas iguais a essa existem às centenas nessas matas. Várias certamente terão, um dia, grande importância industrial, médica ou nutricional, só precisamos estudá-las. É por isso que luto para não permitir a destruição da floresta sem que se saiba o tamanho da riqueza que nela existe."
Três momentos da história influenciaram decisivamente a formulação do Programa de Desenvolvimento Sustentável do Amapá:
1 - Dezembro de 1988, Chico Mendes é assassinato em Xapuri;
2 - Dezembro de 1991, a União Soviética desmorona junto com o socialismo real;
3 - Junho de 1992, no Rio de Janeiro, acontece a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (a já lendária Eco-92).
No final desse mesmo ano, concluo o mandato de prefeito de Macapá.
Janete, minha companheira de vida e de luta, encarregou-se do sustento da família, dando-me um ano para mergulhar fundo no conhecimento a respeito do povo do Amapá, que, então, somava 440 mil almas espalhadas em 143 mil quilômetros quadrados.
Na conferência do Rio, sem Chico Mendes, mas com quase todos os países do mundo presentes, surgiu uma nova combinação de fatores: doravante, a política, a economia e a ecologia deveriam caminhar obrigatoriamente juntas.
Reconheceu-se que o ambiente podia e devia ser aproveitado em benefício das populações que nele habitam, mas tendo o cuidado necessário para não causar os estragos irreparáveis do modelo vigente de produção e consumo capitalista.
Estabeleceu-se então que o crescimento econômico deveria ser sempre compatível com a preservação ambiental. Essas idéias, depois de discutidas e aprovadas por unanimidade, receberam o nome de desenvolvimento sustentável.
Mais ou menos nessa mesma época, veio a queda do socialismo real e, com ela, algumas questões pungentes. E agora? Como prosseguir? Eu me perguntava. Que fim levou a utopia? Chegou a hora de aposentar a idéia da revolução?
Diante de tantas dúvidas e pelo fato de não haver mais caminho, teria eu que conviver, pelo resto dos meus dias, com as injustiças e as desigualdades sociais batendo à minha porta?
O mundo empacou. A contradição capital-trabalho, que havia pautado os grandes conflitos do século vinte, parecia fadada ao entendimento pela imposição hegemônica do capitalismo global.
Foi então que, juntando o legado de Chico Mendes, a "Carta da Terra" e a Agenda 21, documentos da ECO-92, mais um grupo de reflexão suprapartidário e cinco partidos políticos de esquerda, reunimos os ingredientes para repensar a utopia e começar a agir.
Passo nº 1: ganhar as eleições para o governo do Amapá com um programa fundamentado nas teses do Desenvolvimento Sustentável. Na campanha eleitoral, a idéia de promover o desenvolvimento em harmonia com a natureza cativou a população urbana. Para os que habitavam as regiões ribeirinhas isoladas, a campanha parecia idílica, por vezes soava como uma ilusória promessa eleitoral.
Foi certamente uma campanha política diferente, girava em torno de um programa de governo, na época, desconhecido e inovador. Por isso, foi muito comentada e debatida, mas deu certo: ganhamos as eleições.
Tomamos posse no dia 1º de janeiro de 1995. Logo, começamos o trabalho para adequar todas as políticas públicas com base nas diretrizes da Agenda 21.
Nos primeiros dias, nos deparamos com um enorme pedregulho no meio do caminho: faltavam quadros para tocar o projeto. Tivemos de sair à cata de pessoas que pudessem nos ajudar a pensar e, principalmente, implantar o programa.
Teve gente que trocou Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Nova York, Paris, Berlin para vir morar em Macapá. Gente idealista, que chegava e se engajava de corpo e alma no processo. Se, de um lado, preenchiam uma lacuna, de outro, provocavam ciúmes e reações contrárias de alguns atores políticos locais.
Segundo embaraço: o poder tinha dono. Logo percebi que, mesmo chancelado pela vontade popular, não passava de um inquilino temporário, recebido com extrema má vontade pelos demais condôminos.
Qualquer coisa era permitida naquele ambiente, menos dar voz e ouvidos àqueles que me haviam elegido. Segundo o "status quo", cabia-me simplesmente integrar-me ao grupo que, há tempos, comandava aquele pequeno e pouco desenvolvido Estado da Federação. Quer dizer, esquecer o que tinha vindo fazer ali e acatar a idéia de que nenhuma mudança seria possível, que os privilégios são eternos e acontecem por uma vontade superior indefinida. Assim, simplesmente.
Portanto, o que parecia uma idéia consensual na formulação teórica e na vitória eleitoral do Programa de Desenvolvimento Sustentável do Amapá (PDSA), revelou-se pouco palatável na prática.
Em maio de 1995, com a presença do presidente da Comissão de Desenvolvimento Sustentável da ONU, lançamos o PDSA como projeto de construção de uma sociedade sustentável, contendo as seguintes diretrizes:
- Desenvolvimento com preservação ambiental;
- O social como eixo do desenvolvimento;
- Redução das disparidades sociais e regionais;
- Valorização do saber local – agregado ao saber científico e tecnológico.
Era preciso contrariar a lógica do capitalismo selvagem, concentrador de renda e predador do meio ambiente. Somente assim, poder-se-ia iniciar uma revolução pacífica. Começamos então por ampliar o diálogo com a sociedade em busca de parcerias e de seu envolvimento na construção do processo.
O governo, usando meios tecnológicos, foi gradativamente tornando as contas públicas cada vez mais transparentes. A partir de 2001, já no final do mandato do PDSA, qualquer pessoa podia acessar pela rede mundial de computadores as despesas detalhada, em tempo real, e a movimentação bancária a cada final de expediente, na internet.
O Programa de Desenvolvimento Sustentável do Amapá estabeleceu como princípio que todos os cidadãos e cidadãs do Amapá tivessem os mesmos direitos na distribuição dos recursos orçamentários.
Os resultados dessa diretriz foram surpreendentes.
Em oito anos, os indicadores sociais deram um salto. Um dos exemplos mais contundentes disso foi que, logo no primeiro ano de mandato, conseguimos colocar 98.5% das crianças do Amapá na escola. Ampliamos a segurança nos bairros periféricos e a assistência à saúde tornou-se efetiva.
O Amapá, como ex-território, sustentava sua economia no contracheque dos funcionários públicos, com reduzida participação do setor privado. Sabíamos que, para promover o desenvolvimento com sustentabilidade, eram necessárias políticas públicas de inclusão e fortalecimento da iniciativa privada para diversificar a economia.
O governo lançou mão de seu poder de compra, garantindo mercado para os novos produtos surgidos do adensamento da cadeia produtiva dos recursos de sua rica biodiversidade.
Em casa de ferreiro, espeto de pau. No nosso caso, morando no coração da floresta, seria o inverso: em casa de marceneiro, espeto de ferro. Nossas crianças nas escolas se sentavam em cadeiras de ferro e aglomerado.
Estimulamos a criação de uma linha de mobiliário escolar inteiramente composto com matéria prima e mão de obra local, o que nos permitiu, em alguns anos, inverter o fluxo. Passamos a atender as nossas necessidades e exportar. Gerando empregos e reduzindo a pressão sobre a exploração madeireira para exportação em forma de matéria prima.
No entanto, é bom lembrar que vivíamos o ápice das políticas neoliberais em nosso país, época do Deus mercado, que pretendia reduzir ou até mesmo eliminar, qualquer influência do Estado na vida da sociedade.
Lembro de um episódio, colocando em campos opostos o PDSA e o FUNDESCOLA, programa conjunto de financiamento MEC e Banco Mundial para reequipar as escolas públicas. O banco emprestava a menor parte do dinheiro, mas impunha todas as regras de promoção do capitalismo global.
No caso específico, o MEC destinou ao Amapá, R$ 1,5 milhão e meio para aquisição de mobiliário escolar, porém não permitia a compra de produtos em madeira da região. Tivemos que rejeitar inicialmente a oferta, para poder, depois de um longo debate, convencer o MEC e o Banco, a respeitar nosso programa.
A castanha da Amazônia, por exemplo, produto não madeireiro da floresta, ganhou política específica. Os castanheiros se libertaram da tutela do "barracão", onde trocavam um hectolitro (100 litros) de castanha por uma lata de leite em pó de 454 gramas. Organizados em cooperativas, com assistência técnica e crédito, passaram a industrializar e comercializar sua produção, colocando no mercado produtos de maior valor agregado, como a castanha e a amêndoa seca embalada a vácuo, o azeite fino de mesa, a farinha e o biscoito de castanha. O mesmo aconteceu com o açaí: em vez da exploração predatória do palmito, que estava destruindo os açaizais, o governo estimulou a pesquisa, o manejo e a comercialização da polpa que passou a ser exportada para todo o Brasil e para o exterior.
Ao compararmos os números, podemos constatar os reflexos da mudança na economia.
Em 1994, a participação do setor público na formação do PIB do Amapá era de 46%; em 2001 caiu para 38%. Enquanto o PIB nacional teve um crescimento de 26,66%, o do Amapá alcançou 56,04%. Esse desempenho foi alcançado com reduzido impacto ambiental e com a preservação de nossas florestas. Esses dados até hoje podem ser acessados nos sítios oficiais do Governo Federal.
Acrescente-se, o custo político. Os avanços na construção da sociedade sustentável inquietaram setores conservadores e oligárquicos da sociedade amapaense. Nas sombras, José Sarney, ex-presidente da República e senador pelo Amapá, uma das figuras mais poderosas do país, manobrava e mobilizava seus seguidores para desestabilizar o governo.
Numa de suas articulações, conseguiu junto a Gustavo Franco, então presidente do Banco Central, o fechamento por decisão extrajudicial, do Banco do Estado do Amapá (Banap), única instituição financeira pública a ser fechada por decisão política.
O banco, que recebemos quase falido, estava em plena recuperação, suas linhas de crédito popular e agroextrativista dinamizavam a economia. Foi esse banco que pela 1ª vez financiou o manejo de açaizais nativos alavancando a produção e a exportação da polpa, chegando a oito milhões e meio de dólares, na safra de 2006.
Perdemos três anos, mas conseguimos abrir outra instituição de crédito, a Caixa de Fomento, inteiramente voltada a alavancar a nova economia.
No dia cinco de abril de 2002, deixei o cargo de governador para concorrer ao Senado numa campanha eleitoral das mais difíceis. Os inimigos do desenvolvimento sustentável tentaram de tudo para impedir que fosse eleito pelo voto popular. Mas não conseguiram, o povo resistiu e fez valer sua vontade me elegendo senador.
No entanto, o PMDB liderado por José Sarney, não desistiu de tentar me tirar da cena política.
Sua estratégia, então, foi entrar com um recurso junto ao TRE (Tribunal Regional Eleitoral) pedindo a cassação do meu mandato baseado no testemunho de duas mulheres, que acusavam a mim e a minha companheira Janete de comprar seus votos por R$ 26,00 cada, pagos em duas parcelas.
A acusação não prosperou e fomos declarados inocentes.
O PMDB recorreu ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral), que baseado nos depoimentos das duas mulheres (acrescente-se que estas, até hoje, são mantidas financeiramente por quem se beneficiou da fraude) atendeu o pleito do PMDB, cassando o meu mandato de senador e o de minha companheira Janete de deputada federal.
Além da cassação, mais dois fatos marcaram a ruptura com as políticas do desenvolvimento sustentável no Amapá.
A primeira, quando o governo que assumiu o poder em 2003, na tentativa de apagar da memória da população os projetos de sucesso do PDSA, proibiu qualquer menção da palavra "sustentável", em documentos e nos meios de comunicação bancados com dinheiro oficial.
O segundo, quando um incêndio criminoso destruiu a fábrica de biscoitos de castanha da Cooperativa de Castanheiros da Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Rio Iratapuru. No entanto, com o tempo, a força da idéia se sobrepõe ao obscurantismo político, e hoje, oito anos depois do fim do programa de desenvolvimento sustentável do Amapá (PDSA), a sociedade retoma o debate, independente da vontade dos que se imaginam donos do poder.
Por último, a propósito da reunião em Copenhague, a COP 15, vale lembrar que, para reduzir a escala de destruição ambiental, é necessário mudar os padrões de produção e consumo.
Isso é uma questão política, cuja decisão, não sairá dos dirigentes ali reunidos, exige expressa manifestação de vontade da maioria dos habitantes da nave Terra, que avança célere em rota de colisão.
*João Capiberibe, ex-prefeito de Macapá, ex-governador e senador do Amapá, é vice-presidente nacional do PSB. Autor da Lei da Complementar nº 131.
fonte: Congresso em Foco
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