27 de maio de 2012

Ética de verdade é a que ajuda a tomar conta do outro, diz Cortella


José Luiz Araújo

O homem é bicho esquisito e desde que adquiriu a capacidade de pensar, tem em mente uma pergunta recorrente: quem somos, afinal? Seres evoluídos talvez responda a maioria, mas olhando bem de perto certos comportamentos do indivíduo, é possível levantar questões muito pertinentes sobre o que a humanidade entende por evolução. 

Tanta complexidade pede um analista do porte de Mario Sergio Cortella, filósofo, mestre e doutor em Educação e professor de Teologia e Ciências da Religião. Ele recebeu a Reportagem de A Tribuna na bela e aconchegante sala de seu escritório na Capital Paulista para conversar sobre o homem e vários outros assuntos, com ênfase em ética e política, abordagens que têm como principal ator o homem, protagonista da (nossa) história curiosa, dinâmica e em constante transformação.

Muita gente reclama do comportamento dos políticos, mas joga papel no chão, fuma na janela jogando a cinza para fora, não devolve troco que vem a mais, suborna garçom em festa, tem gato de televisão a cabo em casa... O que acontece?
Há a aceitação hoje, com a maior facilidade, de algo de pernicioso que chamo de ética da conveniência. É bom aquilo que me favorece, o que não me favorece considero ruim. Em vez de termos valores de convivência que sejam mais sólidos, menos superficiais, portanto, menos cínicos. Há uma hipocrisia muito grande que leva a esquecer que ética não é cosmética. Não é efeito de fachada. E nesta hora a gente tem sempre que lembrar o que o Corpo de Bombeiros nos alerta: nenhum incêndio começa grande, mas com uma faísca, fagulha, disparo. No campo da ética o apodrecimento dos valores éticos positivos se inicia também com pequenos delitos, infrações, aceitações. A pessoa lê no jornal que quando a polícia tenta subir o morro, marginais soltam rojões de alerta da chegada da lei. Ela acha isso um horror e comenta com outras pessoas. A mesma pessoa não se incomoda em piscar o farol na estrada para alertar que a viatura policial rodoviária está na outra direção. Acha-se solidário alertar um eventual meliante. Isso tipifica um relativismo ético.

É a ética individual?
Não existe ética individual. E nem universal, ainda. O que mais se aproximou disso é a Declaração dos Direitos Humanos, de 1948. Existe a ética de um grupo, comunidade, cidade, nação. Não existe ética individual porque ela está relacionada à convivência social. A minha conduta, para poder ser avaliada como positiva ou negativa, tem que ter como referência a presença do outro ou outros. Eu sou livre, você é livre, o outro é livre. Como fazemos para compatibilizar as nossas liberdades? Regras, valores e hábitos de convivência. Se vivo sozinho, não existe essa questão. Só existe ética porque há homens e mulheres. A humanidade é plural. Mesmo quem vive sozinho, tendo já vivido com outros, expressa valores éticos. No filme O Náufrago, o personagem de Tom Hanks está sozinho em uma ilha, mas tem uma bola de vôlei, com a qual se relaciona como se fosse uma pessoa, ao chamá-la pela marca, Wilson. Quando ele escapa dentro de uma balsa que constrói e a bola cai na água, entra em desespero, pula e arrisca a vida para resgatá-la. Se você imaginar, essa expressão ética é muito forte porque um dos valores, principalmente no ocidente, é nunca deixar um companheiro para trás (vê-se muito em filmes de ação). Valor marcado pela convivência. Repito: não há ética individual. O que existe é a prática de valores éticos pelo indivíduo, que chamamos de moral. 

Qual a diferença entre ética e moral?
O conjunto de valores de conduta nós chamamos éticos. Portanto, ética é uma teoria sobre a conduta. Moral é a prática. Não existe ética individual, mas sim moral individual. A moral é o exercício, a prática de valores éticos. Há um valor ético positivo na sociedade: não furtar. Quando encontro uma carteira no ônibus ou um objeto esquecido no restaurante, devolver ou não é um ato individual moral a partir daquele princípio ético que é de natureza geral. Embora moral e ética estejam conectadas, não significam a mesma coisa. A moral pressupõe sanção. Não é o mesmo em relação à ética. 

Mas há código de ética profissional com sanções.
É um equívoco do ponto de vista filosófico, embora o mercado tenha consagrada a expressão código de ética profissional. Por ser composta por princípios, a ética não pode ser codificada. Um código que se chama de ético profissional é muito mais um código de conduta, convivência, mas não um código de ética. Se quisermos ser fiéis à origem, esse código deveria se chamar Princípios de Conduta, Diretrizes de Comportamento, Diretrizes Éticas.
Gosto do exemplo de que ética é a casa (alvenaria), portanto, fixa. Moral é como a decoramos, daí o fato de ser  mutável de acordo com a cultura.
Não existe a ideia de se pensar ética fora de casa. A palavra ethós, em grego arcaico significa morada, lugar onde vivemos juntos. Até o século VI ac, ethós significava morada do humano. Depois os gregos criaram a palavra oicos, moradia. Ética são os princípios de convivência em nossa casa. Por isso um prédio é chamado condomínio. Casa, em latim, é domus, por isso domínio é o meu lugar.

Domínio que muitos entendem como: posso fazer o que eu quiser.
Mesmo que moremos cada um em sua própria domus, a questão é que não temos domus. Temos con-domínio. Viver é conviver: na cidade, casa, prédio, país, planeta. Ao imaginarmos a vida em condomínio já pressupomos que há regras e deveres. No campo do direito condominial, a propriedade de cada condômino é chamada unidade autônoma (não soberana). Autonomia vem do grego autós (por si mesmo) e nómus (o que me cabe por direito ou dever) indica limites oriundos da vida em meio a outras pessoas, também elas autônomas. Por isso não se pode vender coisas em sua casa, guardar produtos tóxicos, fazer barulho após às 22 horas...

Isso me desperta uma curiosidade: todos têm ética?
Não existe ninguém sem ética.

Até bandidos? Ele têm ética ou regras?
Tem ética – não no sentido positivo – porque há entre eles princípios de conduta de convivência.

Diz-se que ética é sempre para o bem! Ao menos teria assim sido criada na Grécia Antiga. 
Para aqueles que entendem ética desse modo. Como é o seu caso e o meu. Mas se eu entender ética na origem como sendo os princípios de conduta, um traficante tem ética. Não existe ninguém que seja aético porque a ética está ligada à capacidade de escolher, decidir e julgar. Só quem é impossibilitado de escolher, decidir e julgar é aético: crianças ou pessoa com deficiência mental, idoso com esclerose senil. Tanto que a lei chama aquele que não pode ser julgado de incapaz, inimputável. Não pode ser culpabilizado. Há o que eu, Cortella, chamo de antiético: o bandido, o corrupto, o violento, o sacana. Os bandidos possuem uma ética entre eles, mas são antiéticos perante a sociedade. Mas também são antiéticos o deputado que frauda o orçamento, o cidadão que produz desvio fiscal na declaração de imposto de renda, o jornalista que mente na matéria. Para eu poder dizer que tal pessoa é antiética ela tem que ter uma ética. 

E no caso dos gregos antigos?
Não necessariamente. Você pode ter o bem desde que você consiga qualificar o bem. A melhor obra sobre ética é de Aristóteles, no século V AC, Ética a Nicômaco (seu filho e o pai). Ele coloca que a finalidade da ética (assim como a da política) é gerar felicidade, em grego, eudaimonia. No mesmo livro ele defende que a escravidão é uma coisa natural. Há quem nasce para ser escravo. Se ética, naquela época, fosse sempre positiva, não haveria escravidão como fator normal de convivência. Do ponto teórico, a ética é fazer o bem, mas a noção de fazer o bem se altera durante a história. Vejamos o código de conduta que são os Dez Mandamento, organizado na crença hebraica por Moisés no século XIII ac. Um eles diz não cobiçar a mulher do próximo, mas é a versão moderna. Em hebraico está escrito não cobiçar o boi e a terra do próximo. Esse mandamento se refere à propriedade, não à fidelidade. No nosso país, há 20 anos, um homem podia assassinar a esposa em nome da honra e ser absolvido. Há 30 anos a mulher, mesmo trabalhando, precisava de autorização do marido para abrir crediário na loja. Nossa legislação, há menos de cinco anos, autorizava a devolução da esposa, em até sete dias, caso se verificasse (por meio de perícia no Instituto Médico Legal) que não era virgem. Estou falando de 2007, não do ano de 340. O conceito de ética é mutável no tempo. As religiões costumam colocar valores éticos imutáveis, mas elas lidam com dogma. Eu, Cortella, compreendo a ética saudável, a que defende alguns valores. Quem é contrário, para mim, é antiético. A ética médica não admite fazer denúncia contra um colega. É estapafúrdio porque leva à impunidade. Todo cidadão, quando se depara com um ilícito, deve denunciá-lo. Temos entre nós uma ética que vem dos piratas e bandidos, que é a de ser fiel. Até na sala de aula. A professora, de costas, é atingida por algo. Silêncio. Ninguém entrega. Solidariedade, diz alguém. Não. É uma sociedade que construiu uma lógica de trama de interesses recíprocos. Por isso aqui é tão difícil acontecer a delação premiada. O cara vai delatar os outros? Em outros países, como nos EUA, não há tanto esse impacto. O que vamos fazer? A vida é assim! Dizem alguns. Isso é a derrota da nossa capacidade de decência em vários momentos. É preciso que homens e mulheres mudem de comportamento. Uma frase muito confortável no campo da ética é: que horror, alguém tem que fazer alguma coisa. Quem diz isso é porque não é a pessoa que fará. Gosto muito da frase Os ausentes nunca têm razão. 

Como é nossa relação com o Estado?
Na relação entre a pessoa e o estado, o brasileiro diz: você sabe com quem está falando? O brasileiro se coloca na condição de beneficiário do estado e não como seu agente. O norte-americano fala Who do you think you are? (Quem você pensa que é?). Quando confrontado pelo estado, ele declara: Eu sou cidadão. Eu pago impostos. Falando em impostos, há muitos no Brasil, em tributação direta (sobre a renda e a propriedade) e indireta (sobre o consumo). Poucas foram as alterações e isso precisa ser debatido nas escolas, igrejas, etc. O imposto direto recai sobre a grande propriedade, sobre a renda: há imposto predial territorial urbano e o rural, entre outros. Os impostos indiretos recaem sobre o consumo (ICMS, IPI, etc). Seu ganho R$ 510 de salário, o litro de leite longa vida custa R$ 3,00 e R$ 1,00 é de imposto, paga o mesmo R$ 1,00 quem recebe de salário R$ 10 mil, R$ 100 mil. Como a maioria da população não tem renda e só está no campo do consumo, fica evidente que é essa população que é afetada por uma tributação maior. É ela que sustenta a máquina estatal.

Direito e liberdade caminham juntos?
Como avalia meu colega Renato Janine Ribeiro (com quem escrevi o livro Política: Para não ser Idiota), a lei antifumo é a proibição do indivíduo terceirizar sua fumaça. Não se proíbe ninguém de fumar, mas de fazer o outro aspirar o seu fumo. Ou seja, a proibição visa evitar que não-fumantes sejam constrangidos pelos fumantes. Janine fala mais. A lei pode me impedir de fazer mal a mim? Mas quem disse que foi uma escolha livre, sem propaganda maciça que o levou a escolher fumar? Que liberdade é essa? Veja o caso da Lei Seca, na verdade, não está correto chamá-la assim, pois não há a proibição em beber, mas o consumo de certa quantidade e dirigir. Pegar o volante após a ingestão de bebida alcoólica não é um ato individual em razão do possível impacto na vida coletiva, como no caso de um acidente – que, por sua vez, implica em ameaça à vida alheia, gasto do dinheiro público com tratamento, etc. Beber é um ato individual. Dirigir após fazê-lo, não o é. 

É ano eleitoral. Por que tanta descrença com a política?
Um idiota é o prisioneiro de si. Acredita na frase cada um por si e deus por todos. Prefixo id, em grego, é próprio. Para o grego, idiota era o que não participava da política, porque era menos humano. Nós conseguimos inverter: idiota é quem participa. Política é a capacidade de participar da vida da comunidade. Toda vez que há uma relação de disputa e você se coloca como neutro, automaticamente você está alinhado com o vencedor. Há quem diga: não me meto em política. Tem sentido se ver desinteressado em relação a um determinado modo de fazer política. Vale lembrar que, para a própria sociedade grega – nossa mãe antiga, idosa, agora um pouco desprezada –, não haveria liberdade fora da política. Quer dizer, o idiota não é livre porque toma conta do próprio nariz, pois só é livre aquele que se envolve na vida pública, coletiva. Existe um asco por política porque é associada à política partidária dos acordos espúrios e da corrupção. Existe um desprezo por se supor que política é uma coisa menor. Não me surpreende quem não vai a uma assembleia, à reunião de condomínio. É comum encontramos as mesmas pessoas nos mesmo locais. Quase sempre as vemos em determinado cinema, restaurante. Há uma certa intimidade de participação que dá origem a um sentimento de ligação. É metafísico. Algo nos conecta. É o que leva gente a frequentar o facebook, a seguir um semelhante no twitter. E fazer parte de uma ONG, um grupo que organiza uma mob (mobilização) dentro do metrô não significa que a pessoa está interferindo na sociedade. Significa que está fazendo um happening, evento. A escola admite falar em cidadania, mas evita a palavra política. Observa-se isso nos currículos escolares e nos discursos dos políticos. Dizem: estamos aqui para defender a cidadania. Trata-se de um tema transversal como se cidadania e política fossem coisas diferentes. Dá a impressão de que na escola falar de cidadania é nobre e de política, é sujeira. 

O senhor é favorável ao voto do analfabeto?
Ele é um cidadão. Que não se confunda escolaridade com educação. Escolaridade é uma das formas de educação. O não-alfabetizado participa da comunidade: ouve rádio, assiste à TV, conversa, está inserido no cotidiano. Não pode ser castrado novamente porque foi vitimado com a falta de alfabetização. Ele sabe o que é certo e o errado, o bem e o mal, ele faz escolhas todos os dias. E política não é obrigatoriamente consenso, que é uma parte do ato político. É possível ter um consenso estabelecido entre uma minoria, pois ele não é necessariamente a decisão da maioria. O consenso é o anúncio de que se vai evitar o confronto. Conflito é a divergência de posturas, ideias, situações. Confronto é a tentativa de anular o outro. E democracia não é a ausência de divergências mediante sua anulação. É a convivência das divergências sem que se chegue ao confronto. Gosto muito do diálogo entre o Capitão Nascimento e um menino de classe média que ele prende em Tropa de Elite: Você pensa que não está movimentando o crime na cidade? Essa droga que você está comprando é o que movimenta o assassinato em tal lugar, o assalto em tal lugar. É como se ele (Nascimento) dissesse: Isto é política. Em resumo: dar um tapinha na maconha é um ato político, não em si mesmo, mas por suas implicações na vida coletiva. A política não pode ser anulação, tem de propiciar possibilidades de convivência. É por isso que se alguém me pergunta: Política? Eu já respondo: Sou a favor! A favor do quê? Aí começa a política. Ouça o que vamos falar.

Há uma grande onda de denúncias políticas. Como o senhor vê o cenário?
Há um número imenso de denúncias da política partidária, e isso causa uma má falsa impressão no jovem: a de que o Brasil tem muita corrupção quando, na verdade, houve um aumento da denúncia por meio da imprensa. A novidade não é a sujeira, mas o início da limpeza. Uma imprensa livre permite que as pessoas fiquem sabendo das coisas. A corrupção no âmbito partidário pode ser maior em volume financeiro porque o país cresceu, mas é menor em incidência de casos. E a impunidade também é menor. A frase de que tudo termina em pizza é tola. No Estado de São Paulo, em 2011, 56 prefeitos perderam o mandato, mais de 300 vereadores foram cassados só no último trimestre. Estamos bem? Não. Seria tolo achar. Mas não posso dizer que tudo fica por isso mesmo. Somos um país que fez o impeachament de um presidente em 1992. Há imprensa livre, plataformas digitais. Só que há denúncia e denuncismo. Os governos FHC, Lula e Dilma foram envolvidos em muitas denúncias, algumas se provaram verdadeiras e muitas, inverídicas. 

Porque essa enorme distância entre as noções de público e privado?
Porque, de modo geral, somos um país de lógica patrimonialista. Toda a nossa ética pública está voltada à proteção do patrimônio, e não da integridade do indivíduo. A nossa polícia é patrimonialista. Se houver um assalto a banco e alguém ligar, dali a pouco há dez viaturas no local. Se eu disser que uma criança está sendo agredida por um adulto dentro de uma casa, pode ser que eu tenha que ligar várias vezes. Existe o comportamento de que na minha casa (privado) eu falo o que eu quero e na vida pública eu me comporto de maneira aparentemente decente. Mas isso vem sofrendo seus abalos. Cada vez mais há denúncias e apurações. Só que nenhum parlamentar está lá porque roubou o lugar. Alguém o escolheu. E se o escolheu e não examinou antes a escolha que fez,  não é só imprudente como cúmplice. Neste ano temos chances de olharmos bem para as pessoas que vamos escolher. Dá trabalho? Claro! É preciso, sim, observar a vida privada de quem se candidata à vida pública. Observar como a pessoa se comporta no dia a dia, como ela se relaciona com a sua comunidade, como ela utiliza a composição do lixo. Em outras palavras: se há uma virtude a ser observada. Se há coerência do que ela prega e pratica. Se não fizermos essa observação e a colocarmos lá, somos coniventes e isso é uma forma de negligência política. Nesta hora, volta a frase: Os ausentes nunca têm razão.

Como vê a juventude?
No campo da limpeza ética no Brasil não estamos no começo do fim, mas no fim do começo. Estamos começando agora. Há um debate, uma percepção. As plataformas digitais ajudam a propagar ideias. Essa geração que tem 15 anos voltou a escrever. Facebook, twitter, blogs. Filmes como Harry Porter trouxeram o tema da ética à luz: decência, coragem, honra, não praticar a patifaria. Não há, em mim, desesperança em relação aos jovens. O jovem, com razão, não foca na política partidária a sua participação na sociedade. Prefere a temática ambiental, a arte... Não há um modo só de fazer política. Homens de bem como Franco Montoro, Mário Covas, Florestan Fernandes e Apolônio de Carvalho têm a referência ética como positiva. O jovem está carente de exemplos e vamos pegar um concreto. Neymar mudou dos 17 para os 19 anos de modo impressionante. Quando tem um filho de uma relação não estável e assume, o expõe, mostra. Orientado ou não, assumiu, não finge, e ele vê isso como positivo. O Pelé durante anos não assumiu a filha fora do casamento. Vários dos heróis de hoje são negativos. É preciso que os heróis do esporte, música, rádio... sejam exemplares. Mas é preciso começar em casa. 

Os pais são exemplos!
A ética é, acima de tudo, exemplar. Ela funciona para a passagem de valores por dois mecanismos básicos: convencimento e coação. Muitas vezes a coação depois de um tempo se torna convencimento. Uso do cinto de segurança. No início, era para não ser multado. Teve gente que comprou a camisa do Vasco e da Ponte Preta para simular o uso do equipamento. Hoje, duvido que a maioria que entra no carro e coloca o cinto lembra da multa. Já foi pressão, virou convencimento. E há carros que enquanto você não coloca o cinto não dá partida. Virou questão puramente de segurança à vida. Vale no outro polo. Há 30 anos, nesta sala poderia ter uma placa pede-se não fumar. Há 15 anos, proibido fumar. Hoje não há placa e não precisa. Está introjetado pela pressão e pelo convencimento. Voltando a falar de exemplo, meu pai era bancário em Londrina. Até os seis anos eu brincava dentro do cofre em meio as cédulas. Não havia transferência eletrônica de pagamento, então, ele era do tamanho de um quarto. Na primeira vez que entrei, meu pai pôs a mão no meu ombro de forma firme e disse de modo gentil: o que não é teu, não é teu. Ponto. Não bastava meu pai falar, tinha que mostrar. Todo gerente de banco, como ele, recebia presentes: meia leitoa, uma caixa de cerveja. Com toda a gentileza, devolvia. Me serviu quando fui secretário das Educação de São Paulo no governo Erundina. Eu movimentava um orçamento de 4 bilhões de reais.

Mas muita gente tem vergonha de cobrar seu parlamentar eleito.
Mas tem gente que não tem e é a essa gente que temos que nos juntar. É preciso desavergonhar nossa reação ética, o que pode causar uma revolução. A revolução da Santa Ira. A capacidade de ficar irado com o que torna suja nossa sociedade. 

Filosofia na escola é uma solução?
Nem sempre a filosofia é positiva. O nazismo tinha seus filósofos. As ditaduras stalinistas tinham seus livros. O tema ética precisa ser parte do plano pedagógico da escola, não apenas desenvolvido em uma disciplina. É multidisciplinar. O lúdico faz da vida. Mas só existe brincadeira quando todo mundo se diverte. Quando alguém sofre, não é brincadeira. A ética é a mesma coisa. Em uma sociedade em que se quer ser feliz, ou todos podemos sê-lo, ou então não há. Não se confunda qualidade com privilégio. São Paulo é uma cidade em que se come muito bem. Quem come? Quem come o quê? Santos (onde meus sogros residem, cidade que adoro e vou muito, e sou torcedor do Santos FC) tem uma alta qualidade de vida, principalmente para o idoso. Mas quem tem qualidade? Quem mora perto da praia ou na Alemoa? Privilégio é quando alguns têm o que há de melhor. Qualidade é quando todos podem tê-lo, e podendo tê-lo, que se lute para que se tenha. A grande pergunta ética na história, desde o tempo judaico, é: Onde está teu irmão? A ética de verdade é a que ajuda a tomar conta do seu irmão. Quem é o seu irmão? O outro. 

A utopia é necessária?
Gosto do que diz Eduardo Galeno: a utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois. Caminho dez passos, o horizonte corre dez. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Para que eu não deixe de caminhar.
Créditos: Claudio Vitor Vaz
Cortela é filósofo, mestre e doutor em Educação e professor de Teologia e Ciências da Religião

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe seu contato de telefone, email, movimento ou instituição que participa para melhorarmos nossa rede pela cultura da paz.

Vermelho