Revista Conjur
O deputado federal Antônio Bulhões, do PRB-SP, em texto
publicado em 27 de fevereiro de 2012, sobre o Estatuto da Diversidade Sexual,
posicionando-se enquanto “jurista constitucional”, afirma uma suposta
imprecisão quanto a conceituação do que seja orientação sexual e manifesta
dúvidas a respeito do processo de constituição da identidade.
Movido por tais dúvidas, o deputado assevera que o Estatuto
proposto pela OAB - uma proposta de legislação capaz de garantir a efetividade
dos Direitos Humanos Universais ao segmento da sociedade usualmente referido
como “LGBT” (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) — criaria “um
clima de instabilidade e incerteza social”.
Com base nessa suposição, promete que tratará o assunto “na
condição de jurista constitucionalista”, colocando-se à margem de qualquer
posicionamento de cunho religioso. Porém antecipa-se e garante que “com certeza
constataremos juntos que estamos diante de uma aberração jurídica que nos
obriga não a rasgar a Bíblia, mas a Constituição”.
Confusões conceituais
As dúvidas que o deputado expressa são partilhadas por
grande contingente da população. Por muito tempo se acreditou — as ciências
inclusive — que havia somente uma modalidade de erotismo (desejo sexual) e que
este seria o único “natural”: aquele voltado para pessoa de outro sexo;
heterossexual. Com o desenvolvimento do conhecimento científico (antropologia,
psicologia, sociologia), pode-se compreender que a natureza humana e animal é
essencialmente bissexual — termo oriundo da embriologia e do darwinismo,
adotado pela sexologia em fins do século XIX. A bissexualidade significa a
predisposição biológica presente entre humanos e demais animais para o desejo
sexual ora por seres do mesmo, ora do outro sexo (ROUDINESCO e PLON, 1998, p.
71 e 350-351).
Freud e todos os que lhe seguiram retomaram a noção de
bissexualidade como um conceito central para a compreensão da sexualidade. Na
psicanálise, a bissexualidade passou então a expressar a disposição psíquica
inconsciente inerente a toda subjetividade humana, vez que esta se estrutura em
torno da necessidade que o sujeito sente — compelido pela cultura — de realizar
uma “escolha” (inconsciente e não fruto de uma vontade autônoma e voluntária)
em relação a essa propensão que lhe é inerente. Dessa forma, no processo de
construção da própria subjetividade, o indivíduo terminará por apresentar o seu
desejo dirigido (orientado) ou para pessoas de seu próprio sexo biológico, ou
para aquelas do outro sexo, para ambos os sexos.
Essa “escolha” (ou recalque, como chamam os psicanalistas)
de uma das direções do desejo terminou por ser compreendida pelo público leigo
como comportando uma “opção” livre e não como um trabalho inconsciente. Por
força da desqualificação historicamente desferida sobre a homossexualidade em
nossa cultura, passou-se a atribuir o caráter de “opção” exclusivamente à
homossexualidade. Assim, vista como uma manifestação “imoral”, “pecadora”,
“antinatural” da eroticidade, a homossexualidade foi sendo vista como expressão
de um caráter desprezível, incapaz de se pautar em conformidade com o padrão
dominante de sexualidade. Já a heterossexualidade, estabelecida em nossa
sociedade de matriz judaico-cristã como paradigmática, ou seja, como a única
reconhecida e aprovada, tende a não ser percebida como igualmente fruto daquele
mesmo processo inconsciente de “escolha”, ou seja, de recalque. Compreendida a
heterossexualidade como “a verdadeira e correta” expressão do desejo, o aspecto
de “opção” é atribuído apenas aqueles e aqueles que ousam afastar-se do “bom
caminho” — ou seja, da heterossexualidade.
Freud, entretanto, hostilizava fortemente "qualquer
forma de diferencialismo e discriminação". Numa nota de 1910 no seu
"Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", de 1905, afirmou que
"a investigação psicanalítica opõe-se com extrema determinação à tentativa
de separar os homossexuais dos outros seres humanos como grupo particularizado”
(ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 352). Ele a compreendia enquanto uma das
modalidades da sexualidade humana e animal (que é intrinsecamente bissexual),
"retirando dela qualquer caráter pejorativo, diferencialista, não
igualitário ou, inversamente, valorizador". O aspecto de escolha que lhe
atribuía era da ordem do inconsciente, como sempre fez questão de ressaltar. Em
uma carta datada de 9 de abril de 1935 escrita em resposta a uma mãe
estadunidense cuja homossexualidade do filho se queixara, Freud escreveu: “A
homossexualidade não é uma vantagem, evidentemente, mas nada há nela de que se
deva ter vergonha; não é um vício nem um aviltamento, nem se pode qualificá-la
de doença. [...] É uma grande injustiça perseguir a homossexualidade como um
crime, além de ser uma crueldade” (ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 353).
O antropólogo Richard Parker, em artigo revisando o estado
da arte da pesquisa antropológica sobre sexualidade e comportamento entre 1980
e 1990, relata a crescente importância das abordagens baseadas na concepção de
que não apenas o gênero, mas também a sexualidade é construída socialmente, ou
seja, variável de cultura para cultura (Parker, 2001, 127-149). Entretanto,
constatou o estudioso, ainda entre os antropólogos que reconheciam a influência
do sistema cultural sobre a estruturação da subjetividade (identidade,
orientação, prática sexual), era comum observar-se a presença daqueles que
atribuíam à manifestação da sexualidade (a direção do desejo) e à função
reprodutiva um suposto “impulso biológico” — o que significaria dizer que tais
aspectos seriam a-históricos, isto é, “universalmente consistentes”, à salvo
das influências culturais. Esse achado, segundo Parker, expressaria a
influência do modelo cultural do pesquisador sobre suas próprias conclusões.
Cardoso, em sucinta e panorâmica revisão bibliográfica sobre orientação sexual,
demonstra não haver ainda consenso acerca do que e quanto seria influenciado
pela cultura ou determinado por gens, cromossomos e hormônios na orientação
sexual (bi, homo ou heterossexual) de humanos (CARDOSO, 1996).
Seja como seja — culturalmente construída ou bioquimicamente
determinada -, é consenso nos meios científicos da atualidade de que nenhuma
das três direções do desejo sexual (bi, homo ou heterossexualidade) importa
patologia.
No que respeita a identidade ser auto ou hetero construída —
uma das interrogações trazidas pelo deputado — outro pesquisador, Mario
Pecheny, ao refletir sobre a formação da identidade homossexual, nos auxilia na
compreensão desse processo. Pecheny observa que o significado dessas
identidades historicamente tornadas alvo de desqualificação não foi construído pelos
próprios indivíduos; ao contrário. Foram fixados à sua revelia. Assim, gays e
lésbicas, travestis e transexuais tem de superar o conflito resultante da
definição imposta de fora (pela religião, por uma certa concepção de
“moralidade” e de “ciência”) e o direito constitucional à autodeterminação — a
autonomia que todo indivíduo possui, sobretudo os historicamente alvo de
processos de segregação e estigmatização, para proceder a reapropriação e
ressignificação desses conteúdos desqualificados, na legítima busca pelo seu
bem-estar (PECHENY, 2004, p. 167; CONSTITUIÇÃO, 1988, arts. 1º; 3º; 5º).
Foi sobretudo no contexto das grandes lutas por direitos
civis e humanos, vindas a lume em fins da década de 60 do século passado, que
homossexuais (gays e lésbicas), travestis e transexuais ocuparam o espaço
público para reivindicar que, como humanos, também tinham direito à dignidade e
a uma cidadania igualitária, não podendo mais continuar a ser alvo de
humilhações e cerceamentos em seus direitos humanos. No Brasil essas lutas
emergiram entre fins dos anos 70 e início dos 80 do século passado. Dela faziam
parte os negros, os povos nativos, as prostitutas e as mulheres, além dos
homossexuais. De todas essas categorias, a única que permanece excluída da
plena cidadania são os/as homossexuais, os/as travestis e os/as transexuais.
Na atualidade, as nações mais culturalmente avançadas e as
organizações internacionais de direitos humanos já reconhecem que enquanto
universais, os direitos humanos não podem deixar de ser reconhecidos e
protegidos quando se trata de pessoas cuja direção do seu desejo erótico
encontra-se voltada para pessoa do seu próprio sexo ou de ambos, à exemplo do
que se verifica com aquelas cuja direção do desejo está dirigida para alguém de
sexo diferente do seu. Essas nações e organismos, ademais do reconhecimento,
exortam os demais países a que elevem o patamar sociojurídico de sua nação,
garantindo a todos os segmentos da população a garantia da efetividade dos
direitos fundamentais — inclusive e sobretudo aos homossexuais, travestis e
transexuais, em razão da história desqualificação a que são alvo.
O Brasil, na qualidade de integrante desses organismos
internacionais, é signatário de tratados e acordos que o obrigam a promover a
superação desse paradigma discriminatório, em busca da construção de uma
cultura inclusiva, fraterna e respeitosa. Também a Constituição da República
igualmente determina ao Estado brasileiro a observância desses valores — não
discriminação, igualdade, dignidade.
Estruturada em torno do conceito axial da dignidade da
pessoa humana, a Carta Cidadã possibilita extrair de seu conjunto a concepção
do direito à orientação sexual como parte integrante dos direitos humanos —
constituídos que estão pelas liberdades fundamentais, dentre elas, a de viver
livre do medo e da indignidade (BELLI, 2009, p. 31). Esse é um entendimento
cuja construção igualmente se processa de forma mundial e cujos marcos são a
Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, ocorrida no Cairo,
em 1994 e a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, ocorrida em Pequim, em 1995
(VIANNA; LACERDA, 2004; BIGLIONE apud VIANNA; LACERDA, 2004; BUGLIONE, 2004;
CARRARA, 2004; BARSTED, 2005).
Com vistas à efetividade de tais normativas jurídicas — os
acordos e tratados internacionais e a nossa própria Constituição —, a Ordem dos
Advogados do Brasil, como tem feito ao longo da história, veio trazer a sua
contribuição no esforço comum de tornar o nosso Brasil um país verdadeiramente
fraterno, democrático, respeitoso das dignidades individuais.
Como constitucionalista, o deputado Antonio Bulhões há de
conhecer a luta internacional pelos Direitos Humanos e as recomendações
emanadas dos organismos e acordos e tratados internacionais e de nossa Lei
Maior, compreendendo o contexto jurídico no qual se insere o Estatuto da
Diversidade Sexual.
Quanto à Bíblia, é de se supor a capacidade do parlamentar —
se não pela sua formação jurídica, ao menos pelo juramento que fez por ocasião
de sua posse — em proceder ao discernimento quanto a esfera de competência do
livro sagrado dos cristãos — somente dos cristãos, é bom que se recorde — em
relação à vida civil de todos os brasileiros e brasileiras e à laicidade do
estado constitucional.
Bilbliografia
BARSTED, Leila Linhares. Novas legalidades e novos sujeitos
de direitos. In: ÁVILA, Maria Betânia; PORTELLA, Ana Paula; FERREIRA, Verônica
(orgs.). Novas legalidades e democratização da vida social: família,
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BELLI, Benoni. A politização dos direitos humanos: o
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São Paulo: Perspectiva, 2009.
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BULHÕES, Antônio. Estatuto da Diversidade Sexual — I.
Publicado no Boletim 002/2012 do Gabinete do Deputado. Disponível em:
http://www.vaiarrebentar.com.br/deputado-antnio-bulhes-estatuto-da-diversidade-sexual-i/#axzz1oGe0Of9y
CARDOSO, Fernando Luiz. O que é Orientação Sexual. São
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CARRARA, Sérgio. Uma reflexão sobre direito sexual. In:
RIOS, Luís Felipe et al (orgs.).Homossexualidade: produção cultural, cidadania
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CONSTITUIÇÃO Federal. Código Civil e Constituição Federal.
São Paulo: Saraiva, 2007.
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PECHENY, Mario. Identidades discretas. In: RIOS, Luís Felipe
et all (orgs.). Homossexualidade: produção cultural, cidadania e saúde. Rio de
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ROUDINESCO, Elizabeth e PLON, Michel. Dicionário de
Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
VIANNA, Adriana; LACERDA, Paula. Direitos e políticas
sexuais no Brasil: o panorama atual. Rio de Janeiro: CLAM/IMS/UERJ, 2004.
[1] Rita C. C. Rodrigues é Graduada em Direito pela UFRJ;
Doutoranda em História Social pela UFF e Mestre em Política Social (Proteção
Social) pela mesma Universidade.
Rita C. C. Rodrigues é graduada em Direito pela UFRJ e
Mestre em Política Social (Proteção Social) pela UFF.
Revista Consultor Jurídico, 18 de março de 2012
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