1 de novembro de 2011

Quando o Estado não é laico

Em Honduras, o simples anúncio de um espetáculo, intitulado “Música + Alma + Sexo”, gerou tanta polêmica nas últimas semanas que o presidente da república, Porfírio Lobo Sosa, foi obrigado a intervir. No palco do imbróglio estavam o cantor porto-riquenho Ricky Martin, a Confraternidade de Igrejas Evangélicas e o ministro do Interior, Áfrico Madrid.


Em carta enviada à Madrid, as igrejas evangélicas solicitaram a proibição da entrada do cantor no país, deixando claro o motivo: “O núcleo familiar que este artista tem não é o tipo de família que as leis de Honduras e que a sociedade hondurenha quer constituir e fomentar nos jovens e no resto da população”.

Em março de 2010, Ricky Martin assumiu publicamente a homossexualidade, passando a andar sempre acompanhado pela família, que é composta por seu companheiro e dois filhos gêmeos - gerados através de inseminação artificial em barriga de aluguel.

Para Erick Martinez, do Movimento Diversidade em Resistência, essa situação prova que em Honduras o problema da homofobia é grave. “E isso acontece porque realmente não há um interesse do Estado em enfrentar o tema”, afirmou. “Estamos fazendo um trabalho para promover uma politica pela não discriminação. Mas a mídia insiste em dizer que nossa luta é somente pelo direito ao casamento, por isso tanta polêmica em torno da família de Ricky Martin”, completou.

“Moral e bons costumes”

A partir do pedido das igrejas, o ministro Áfrico Madrid montou uma Comissão de Censura para avaliar uma demo do concerto do ex-integrante do grupo Menudo. Segundo o ministro, era necessário checar se o espetáculo garantia o “respeito a moral e aos bons costumes”. A comissão determinou que o show estava proibido para menores 15 anos. Por todos os países por onde passou - incluindo Brasil, Venezuela, Colômbia e Nicarágua - a turnê não sofreu nenhuma censura.

A essa altura da polêmica, o presidente Porfírio Lobo Sosa, que estava nos Estados Unidos, em visita a Obama, interviu, liberando o evento de qualquer censura. “Ele teve que tomar uma decisão porque o comportamento de seu ministro colocava em evidência que Honduras é homofóbica e que a igreja, em sua cota de poder, utiliza sim as instituições do Estado em seu benefício” opinou Erick Martinez. O tema da reunião com o Obama era justamente a situação dos direitos humanos em Honduras.

Censurar ou cancelar o evento, previsto para ser realizado no dia 18 de outubro (após o fechamento desta edição), em Tegucigalpa, também significaria comprar briga com patrocinadores de peso como o Banco Credomatic, a empresa de telefonia Claro e a cervejaria Corona, que investiram no show. “Não podemos esquecer que Ricky Martin é um empresário, embaixador do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e que o dinheiro do show será revestido para uma fundação que trabalha com direito das crianças”, acrescenta Martinez.

Religião e política


Para o ex-pastor e atual membro da comissão política da Frente Nacional de Resistência Popular (FNRP), Guillermo Jiménez, o episódio evidenciou uma “hipocrisia histórica” e a linha tênue da relação entre religião e política. “Os religiosos falam que não têm que se meter em política, mas isso já é uma postura hipócrita. E os políticos, por sua vez, dizem que não têm que se meter em religião, mas quando convêm, usam a simbologia, os ritos e aparentam ser religiosos” analisa.

Segundo Jiménez, um exemplo dessa hipocrisia aconteceu quando, por ocasião do golpe de Estado civil-militar, que derrocou o então presidente Manuel Zelaya, os setores da igreja, principalmente o arcebispo de Tegucigalpa, Oscar Andrés Rodríguez, saíram em defesa de Roberto Micheletti, o presidente do regime golpista.

Micheletti foi qualificado como “o Messias da América Latina”, “um herói nacional” ou “o eleito de Deus para defender a democracia”. Para o ex-pastor, essas expressões religiosas com roupagem politica são as mais perigosas e manipuladoras. “Aí já não cabe a razão e sim a “revelação”, o “profetismo”. E se não há razão nem lógica há o caos”, afirma.

Gilda Rivera, diretora do Centro de Direitos das Mulheres (CDM) e militante da organização Feministas em Resistência, chama a atenção para o fato de que as igrejas evangélicas e católicas vêm adquirindo cada vez mais força no país. “Possivelmente, um dos fatores tem a ver com todo o contexto econômico e politico em que vive a população. Buscam satisfazer direitos que não alcançam por causa da desigualdade, falta de oportunidade e violência”, analisa.

Segundo ela, essas igrejas jamais se comprometeram com temas realmente importantes, como a luta pelo fim da violência contra as mulheres. Ela lembra que, em Honduras há uma igreja, chamada Mi Viña, cujo slogan é “Não se divorcie, nós trabalhamos por sua família”. “O que está por trás desse slogan? Pregam que a mulher deve suportar a opressão, que o principal é manter a relação não importa o custo para a mulher e muitas vezes pros filhos e filhas”.

Para a feminista, os setores fundamentalistas da igreja no poder acabam influenciando em políticas que prejudicam mulheres, jovens e homossexuais, já que incrementam o número de adolescentes grávidas, contágio de doenças sexualmente transmissíveis, evasão escolar e geram até custos econômicos para o Estado.

Um exemplo dessa influência foi o ataque à educação sexual no ensino público, através da proibição de uma cartilha que continha imagens de dois jovens nus, com a intenção de ensinar a localização dos órgãos sexuais e reprodutores. “Essa cartilha, que foi elaborada por especialistas da ONU, foi muito perseguida, sob o argumento de que continha 'pornografia', principalmente por uma deputada chamada Martha Lorena Casco. É uma senhora de muito dinheiro”, denuncia Gilda.

Pílula do dia seguinte

Martha Lorena Casco foi eleita deputada no marco de uma campanha para uma maior participação feminina na vida política do país e, na época, obteve apoio do então candidato à presidência pelo Partido Liberal, Manuel Zelaya Rosales. “Depois, tornou-se uma das maiores apoiadoras do golpe de Estado. Nomearam-na vice-ministra de Relações Exteriores do regime golpista”, conta a feminista.

A deputada é presidenta do grupo Pró-vida, organização estritamente ligada à igreja católica e que se declara “defensora da vida” e “contra o aborto e métodos anticoncepcionais”. Em 2009, dois meses antes do golpe de Estado, Casco e seu grupo estiveram envolvidos numa das brigas entre Zelaya e o Congresso nacional, já demostrando as fortes contradições entre ambos.

A parlamentar pediu ao Congresso que proibisse a comercialização do contraceptivo de emergência. “Mas o congresso nacional não podia proibir porque é uma politica de saúde pública que depende do Executivo”, explica Rivera. “Então, o Congresso enviou uma proposta de decreto para que o presidente Zelaya aprovasse. Mas ele vetou e o caso foi para a Corte Suprema de Justiça. Nisso se dá o golpe de Estado e, logo em seguida, a proibição é aprovada”, relata.

Na opinião de Gilda esses setores religiosos fazem parte dos grupos oligárquicos do país que, além de contarem com muito recurso econômico, colocam e tiram pessoas de cargos públicos. “Estamos falando de um grupo de poder. Estas não são pessoas religiosas, estão partindo de princípios fundamentalistas. E eles sabem que a libertação da mulher vai tocar nos seus privilégios. É uma semente de transformação”.

Depois do golpe, as estatísticas

Segundo as organizações feministas e de diversidade sexual, os crimes contra homossexuais e a violência contra a mulher aumentaram depois do golpe de Estado, ocasião em que os grupos religiosos passaram a ter mais poder no Congresso. De acordo com dados do Centro de Direitos das Mulheres (CDM), os feminicídios (assassinato de mulheres por razão sexista) têm aumentado ano após ano, e chegaram ao total de 343 no ano de 2010. Mas, a organização evidencia que neste ano, tomando como base o ano de 2002, houve um aumento de 257.9% nas mortes. Em 2011, os números não melhoraram: pegando os seis primeiros meses e comparando com o mesmo período de 2010, os femincídios aumentaram em 25%.

“Há um aumento do feminicídio, assim como há uma alta dos homicídios gerais no país. Mas há, principalmente, um aumento da impunidade”, ressalta Gilda. “Estamos trabalhando em um caso que um policial violou duas irmãs e os juízes não o puniram. Há outro caso em que um médico assassinou sua namorada, mas como ela era militante da resistência ao golpe de Estado, qualificaram como um “crime político”, quando na verdade se tratava de um feminicídio íntimo. A impunidade sempre existiu, mas agora está mais forte”.

Já o Movimento de Diversidade Sexual contabilizou, de junho de 2009 para cá, 57 assassinatos. O relatório da Anistia Internacional referente ao ano de 2010, denuncia a impunidade contra esses crimes: “Estes ataques, raras vezes são investigados exaustivamente e segue a inquietude da falta de proteção a quem denuncia estes delitos” afirma o documento.

Um exemplo de crime impune foi o cometido contra a travesti Deborah. Sua história é a mesma de muitos: na adolescência se assumiu homossexual e travesti. Quando seus pais se deram conta, a expulsaram de casa. Começou a prostituir-se como única maneira de sobreviver. Numa noite, ao se negar a entrar num carro com 5 pessoas, levou quatro tiros, na frente de muitas testemunhas, colegas de trabalho. “A polícia diz que está investigando, mas é totalmente falso. Nos dizem isso para que nos acalmemos e para que não sigamos denunciando a impunidade dos crimes”, denunciou Oney Moreno, ex-companheiro de Deborah.

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