A realização do Fórum Social Mundial em  Dacar,  Senegal, “se deu como expressão de solidariedade com a história  de luta e  resistência dos povos africanos”, comentou a teóloga Cleusa  Andreatta,  ao retornar do continente africano, após participar do Fórum  Social  Mundial (FSM) e do Fórum Mundial de Teologia e Libertação  (FMTL). Em  entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ela menciona  que refletir  sobre os desafios do pluralismo religioso e discutir temas  globais no  contexto de realidade local da África do Sul foi  impactante. Cleusa  representou o Instituto Humanitas Unisinos – IHU,  integrante da comissão  organizadora do Fórum Mundial de Teologia e  Libertação (FMTL), em  Dacar. 
A falta de infraestrutura e os problemas na organização dos eventos,   segundo a teóloga, “traduz outras questões e dificuldades”. Ela explica:   “Recebemos a informação de que pouco tempo antes do início do FSM  houve  a troca do reitor da universidade (pública) Cheikh Anta Diop,  local de  realização do evento. O novo reitor não assumiu os acordos  feitos pelo  seu antecessor e não dispensou as aulas. Com isso, pior do  que a redução  dos espaços para as atividades foi a improvisação que não  possibilitou  uma divulgação da programação do FSM com indicação dos  respectivos  locais”. Apesar das improvisações, Cleusa lamenta a falta  de  interlocução entre os participantes dos eventos. “A principal  limitação  foi a interlocução quase nula com outros públicos e sujeitos  do FSM  devido a certa dispersão que se criou. (...) Ao lado de salas e  tendas  em que estavam acontecendo as poucas atividades do fórum na  universidade  aconteciam normalmente as aulas, com alunos e professores  totalmente  alheios ao evento”. 
 
Cleusa Andreatta é graduada em Filosofia e em Teologia pela  Pontifícia  Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), mestre em  Teologia  pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia e doutora em  Teologia  pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro  (PUC-Rio).  Atualmente é professora da Universidade do Vale do Rio dos  Sinos  (Unisinos) e coordenadora do Programa de Teologia Pública do  Instituto  Humanitas Unisinos – IHU.  
 
Confira a entrevista. 
 
IHU On-Line – Quais suas impressões do Fórum Social Mundial e do  Fórum  Mundial de Teologia e Libertação, que aconteceram em Dacar,  Senegal? 
Cleusa Andreatta – O FSM e o FMTL, como também outros fóruns,   assembleias e workshops aconteceram em meio aos desafios e   possibilidades de organização de um evento que se caracteriza pela   mobilização de milhares de pessoas vinculadas entre si por uma grande   diversidade de redes, movimentos e organizações sociais. Como nas   edições anteriores, com sua dinâmica de atividades autogestionadas, o   FSM, em Dacar, confirma a grande importância desse megaevento como   espaço de confluência e mobilização de grupos e movimentos sociais,   dando visibilidade às lutas e alternativas que vão se construindo em   diferentes contextos locais pelo mundo afora, aproximando esforços e   favorecendo a mobilização de diferentes grupos e iniciativas “por um   outro mundo possível”. A participação de um grande número de movimentos e   organizações, constatada na marcha de abertura do FSM e nas múltiplas   atividades realizadas antes e durante o FSM, apontam para sua   importância na aproximação, articulação e mobilização entre processos   locais e globais em vista das transformações sociopolíticas urgentes   para nosso tempo. 
O FMTL, uma atividade autogestionada entre muitas outras, com uma   importante participação de teólogos e teólogas de diversos países, tal   como nas edições anteriores, buscou ocupar seu lugar e discutir sua   contribuição nesse processo todo. Em relação às edições anteriores,   caracterizou-se por alguns avanços importantes enquanto “fórum”, dos   quais destaco dois: na sua dinâmica interna, garantiu um envolvimento   bem maior dos participantes nos diversos debates, interagido na   discussão sobre caminhos e perspectivas para a teologia nos seus   diversos contextos e frente aos desafios globais; por outro lado, houve o   empenho por uma maior aproximação das dinâmicas, debates e espaços do   FSM, tendo em vista a interlocução com outros públicos deste evento.   Essa segunda proposta não avançou como o esperado devido a problemas com   a infraestrutura do FSM, mas foi importante como proposta. 
A realização do FSM em Dacar, Senegal, isto é, em contexto africano,  se  deu como expressão de solidariedade com a história de luta e   resistência dos povos africanos. Discutir temas globais no contexto   dessa realidade local é algo que impacta de um modo particular pela   aproximação concreta com a realidade local. O dia do FSM dedicado   exclusivamente à África e à diáspora africana alargou as expectativas de   conhecer de forma mais articulada um pouco da realidade do continente   africano. Infelizmente, os limites do FSM também não favoreceram esta   aproximação. 
De qualquer forma, no conjunto, vejo que os dois fóruns tratados deram conta em grande medida de cumprir seu papel em Dacar. 
 
IHU On-Line – Que metodologia foi utilizada na organização do evento? 
Cleusa Andreatta – O Fórum Mundial de Teologia e Libertação sempre   acompanha o Fórum Social Mundial no local e na época de sua realização   (Porto Alegre – 2005; Nairóbi – 2007; Belém – 2009; e Dacar – 2011).   Enquanto em suas edições anteriores o FMTL era realizado em dias   anteriores ao FSM, para Dacar ele teve como proposta uma metodologia que   possibilitasse uma maior interação com o FSM, sem deixar de garantir   uma agenda propícia para a reflexão e produção teológica. Assim, o FMTL   iniciou no dia 05 de fevereiro, um dia antes do FSM, com uma boa   integração do grupo e com dois grandes painéis: um painel de abertura   sobre Bens comuns universais no horizonte das tradições religiosas, com   presença de teólogos e teólogas dos diversos continentes; e um painel   sobre Contextualização e desafios da teologia Contemporânea, trazendo a   situação da teologia em diversos contextos de proveniência dos   participantes do Fórum e oportunizando partilha de experiências. 
Para os dias seguintes, a proposta foi inserir-se na dinâmica do FSM.   Após uma visita à ilha de Gorée  e a participação na marcha de abertura   no dia 06 de fevereiro, o FMTL inseriu-se no território e dinâmica FSM   com diversas temáticas abertas ao público em geral. Assim, oferecemos e   participamos de oficinas no dia dedicado inteiramente à África e à   diáspora africana e, no dia seguinte, com uma variedade de temas   candentes no atual contexto. Também se buscou favorecer aos   participantes do FMTL a participação e integração em outras atividades   do FSM podendo, em vista de um “ver-escutar” a realidade e discernir   desafios e possibilidades, abrir caminhos e perspectivas para a teologia   e suas contribuições para “um outro mundo possível”. Esta proposta não   avançou com foi planejado devido às dificuldades com a infraestrutura e  a  divulgação falha da programação geral FSM. A principal limitação foi  a  interlocução quase nula com outros públicos e sujeitos do FSM devido  a  certa dispersão que se criou. De qualquer forma, as atividades foram   intensas, com bom número de participantes, bem dinâmicas e   enriquecedoras para o debate teológico. 
No dia reservado pelo FSM para assembleias por temas de interesse, o   FMTL realizou um seminário que foi o seu ponto alto. Esse seminário teve   como objetivo discutir tarefas, categorias, métodos e linguagens mais   adequados para uma teologia relevante nos próximos anos, considerando  as  implicações de uma consciência planetária sensível a pluralidade   contextual.  
Enfim, discutir qual a epistemologia mais adequada da diversidade,   pluralidade e complexidade que caracteriza o cenário mundial de hoje.   Esse foi, sem dúvida, o momento mais rico e marcante do FMTL/2011, pela   densidade da reflexão em grupos e no grande plenário, pela troca de   saberes, pelo levantamento de desafios e perspectivas para a reflexão   teológica. 
 
IHU On-Line – Segundo informações da imprensa, a organização dos eventos foi bastante precária. Quais os maiores problemas?  
Cleusa Andreatta – Faltou uma boa infraestrutura, sim. Mas este fato   traduz outras questões e dificuldades. Recebemos a informação de que   pouco tempo antes do início do FSM houve a troca do reitor da   universidade (pública) Cheikh Anta Diop, local de realização do evento. O   novo reitor não assumiu os acordos feitos pelo seu antecessor e não   dispensou as aulas. Com isso, pior do que a redução dos espaços para as   atividades foi a improvisação que não possibilitou uma divulgação da   programação do FSM com indicação dos respectivos locais. Além disso, a   tiragem de cópias da programação era muito pequena considerando a grande   procura. Os grupos que foram rápidos em se organizar e disputar os   poucos espaços existentes ficaram bastante isolados, com dificuldade de   interlocução com outros sujeitos do FSM. Ao lado de salas e tendas em   que estavam acontecendo as poucas atividades do Fórum na universidade   aconteciam normalmente as aulas, com alunos e professores totalmente   alheios ao evento. Penso que esse fato também sinalizou para a   dificuldade das equipes de organização do FSM agilizarem soluções para o   problema.  
O resultado é que essa situação realmente prejudicou o FSM e, no  nosso  caso, o FMTL, porque tornou inviável propostas longamente  preparadas. 
 
IHU On-Line – Você participou da marcha de abertura do Fórum Social Mundial. Como foi esse momento? 
Cleusa Andreatta – A marcha de abertura é sempre um marco nos FSMs e   sempre acho difícil descrever. De qualquer forma, sempre impacta como   referência simbólica: marcha, caminhada, povo em movimento; muitas   bandeiras, muitas vozes, muitas expressões de empatia e solidariedade;   diversidade de cores e tons, diversidade de grupos e movimentos   caracterizados com suas camisetas, faixas, palavras de ordem,   coreografias; diversidade de delegações mobilizadas com suas bandeiras,   cantos, palavras de ordem.  
Em meio à caminhada chamou-me bastante a atenção a grande  participação  da juventude, a diversidade de movimentos e associações de  mulheres (a  maioria da África) e a grande delegação da Via Campesina. 
Ao longo de todo o trajeto, como nas outras marchas, havia muita  gente  nos dois lados da rua, assistindo, olhando, numa situação difícil  de  ser avaliada em seu significado. De qualquer modo, isso me faz ver a   marcha como uma forma de o Fórum marcar sua presença no local, garantir   ao menos um pouco de visibilidade pública.  
A marcha também sempre reserva surpresas, como o encontro de pessoas e   grupos conhecidos em outras épocas e lugares, e a possibilidade que   oferece para conhecer novos grupos e iniciativas, sendo que já ao longo   do caminho os participantes do Fórum vão divulgando suas atividades. 
 
IHU On-Line – Quais foram os grandes temas abordados nos dois encontros?  
Cleusa Andreatta – No FMTL, além do debate sobre Bens comuns  universais  no horizonte das tradições religiosas e sobre teologias  contextuais,  foram debatidos em workshops os seguintes temas: A crítica  do Espírito  do Capitalismo Global e os direitos sociais globais;  Teologia e paz –  de que teologia precisamos; Crise civilizatória,  alternativas,  espiritualidade; Sabedoria dos povos e Ética Mundial;  Comunidades  Eclesiais de Base e Teologias da Libertação; Cristãos e  muçulmanos: o  caminho do diálogo e da libertação; A África em tumulto:  uma resposta  de cura e espiritualidade; Feminismos e libertação:  desafios teológicos  para o século XXI; Heranças religiosas africanas e  os desafios para  uma teologia afro-americana da libertação; Religiões,  migração e  libertação. 
No seminário de teologia realizado dentro do FMTL, o grande tema   abordado foi a questão de uma epistemologia para a teologia da   libertação que seja capaz de dar conta dos desafios e possibilidades que   emergem das questões da atualidade em sua configuração em contextos   locais, mas enquanto vinculadas a situações e desafios globais. 
 
IHU On-Line – Como é possível, a partir das discussões do FMTL, pensar uma teologia do pluralismo religioso? 
Cleusa Andreatta – A teologia do pluralismo religioso esteve presente   do FMTL junto de outros temas abordados. Algumas questões e situações   aí vividas e evidenciadas sinalizam alguns aspectos a se ter em conta.  
Estivemos num contexto de presença muçulmana majoritária e não   conseguimos a participação de nenhum muçulmano em nosso fórum de   teologia. Encontramos algumas respostas práticas para isso, mas   permaneceu uma pergunta aberta pelas razões dessa ausência. Entretanto,   Dacar/Senegal tem como característica uma convivência pacífica e   respeitosa entre cristãos e muçulmanos, com importantes situações de   colaboração na vida cotidiana. Penso que uma teologia “formal” do   pluralismo religioso deve debruçar-se sobre experiências concretas de   encontro, convivência e diálogo inter-religioso como essa e tirar as   consequências para a reflexão teológica. 
A questão do pluralismo foi abordada em diferentes momentos em  conexão  com outros temas tratados no Fórum. O insistente destaque a  termos como  pluralidade, pluralismo, diversidade, diferenças,  interculturalidade  ao longo de todo o fórum e em relação a diversos  temas e questões,  aponta para uma teologia do pluralismo religioso que  deve  desenvolver-se na intersecção ou em interlocução com outras  questões  como paz/violência, crise ecológica, gênero,   cultura/interculturalidade, entre outras. 
Além disso, o FMTL, de diferentes modos, tornou presente a  diversidade  de experiências religiosas. As experiências das pessoas e  comunidades  estão estreitamente vinculadas ao contexto concreto de suas  vidas, onde  se entrelaçam as diversas dimensões do seu existir cotidiano  e se  consolidam as condições de possibilidade das estruturas de  sentido. Uma  teologia do pluralismo religioso precisa tratar com  profundo respeito e  reconhecimento as diferentes experiências  religiosas, em sua  singularidade na aproximação ao mistério de Deus. Por  outro lado,  destaca-se de novo que toda a teologia precisa ter sempre  presente o  que aprendemos da teologia negativa e apofática: o Mistério  de Deus não  se deixa limitar por nenhuma experiência ou conhecimento que  dele  podemos ter. Esse reconhecimento mantém a abertura da fé para   reconhecer as possibilidades de Deus se manifestar e ser reconhecido em   diferentes experiências religiosas. 
 
IHU On-Line – Quais as perspectivas para os dois fóruns no próximo ano?  
Cleusa Andreatta – Quanto a datas e lugar não se tem nada ainda   definido. Não me considero nesse momento apta para falar de perspectivas   para o FSM. Para o FMTL, destacou-se a importância de levar adiante o   processo no período “interfórum”. O que e como vamos fazer em termos de   FMTL até a próxima edição? Em Dacar se acentuou a sugestão de investir   em fóruns locais, regionais, num compromisso, mantendo uma articulação   em rede com os diferentes contextos via internet (sites, mídias   sociais). Essa é uma tarefa a ser levada adiante, de forma aberta,   garantindo espaço para as diferenças, a interação e busca conjunta. 
 
 
Fonte: IHU           
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