25 de fevereiro de 2011

Um balanço do Fórum Social Mundial e do Fórum Mundial Teologia e Libertação

A realização do Fórum Social Mundial em Dacar, Senegal, “se deu como expressão de solidariedade com a história de luta e resistência dos povos africanos”, comentou a teóloga Cleusa Andreatta, ao retornar do continente africano, após participar do Fórum Social Mundial (FSM) e do Fórum Mundial de Teologia e Libertação (FMTL). Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ela menciona que refletir sobre os desafios do pluralismo religioso e discutir temas globais no contexto de realidade local da África do Sul foi impactante. Cleusa representou o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, integrante da comissão organizadora do Fórum Mundial de Teologia e Libertação (FMTL), em Dacar.
A falta de infraestrutura e os problemas na organização dos eventos, segundo a teóloga, “traduz outras questões e dificuldades”. Ela explica: “Recebemos a informação de que pouco tempo antes do início do FSM houve a troca do reitor da universidade (pública) Cheikh Anta Diop, local de realização do evento. O novo reitor não assumiu os acordos feitos pelo seu antecessor e não dispensou as aulas. Com isso, pior do que a redução dos espaços para as atividades foi a improvisação que não possibilitou uma divulgação da programação do FSM com indicação dos respectivos locais”. Apesar das improvisações, Cleusa lamenta a falta de interlocução entre os participantes dos eventos. “A principal limitação foi a interlocução quase nula com outros públicos e sujeitos do FSM devido a certa dispersão que se criou. (...) Ao lado de salas e tendas em que estavam acontecendo as poucas atividades do fórum na universidade aconteciam normalmente as aulas, com alunos e professores totalmente alheios ao evento”.

Cleusa Andreatta é graduada em Filosofia e em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia e doutora em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Atualmente é professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e coordenadora do Programa de Teologia Pública do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. 


Confira a entrevista.


IHU On-Line – Quais suas impressões do Fórum Social Mundial e do Fórum Mundial de Teologia e Libertação, que aconteceram em Dacar, Senegal?
Cleusa Andreatta – O FSM e o FMTL, como também outros fóruns, assembleias e workshops aconteceram em meio aos desafios e possibilidades de organização de um evento que se caracteriza pela mobilização de milhares de pessoas vinculadas entre si por uma grande diversidade de redes, movimentos e organizações sociais. Como nas edições anteriores, com sua dinâmica de atividades autogestionadas, o FSM, em Dacar, confirma a grande importância desse megaevento como espaço de confluência e mobilização de grupos e movimentos sociais, dando visibilidade às lutas e alternativas que vão se construindo em diferentes contextos locais pelo mundo afora, aproximando esforços e favorecendo a mobilização de diferentes grupos e iniciativas “por um outro mundo possível”. A participação de um grande número de movimentos e organizações, constatada na marcha de abertura do FSM e nas múltiplas atividades realizadas antes e durante o FSM, apontam para sua importância na aproximação, articulação e mobilização entre processos locais e globais em vista das transformações sociopolíticas urgentes para nosso tempo.
O FMTL, uma atividade autogestionada entre muitas outras, com uma importante participação de teólogos e teólogas de diversos países, tal como nas edições anteriores, buscou ocupar seu lugar e discutir sua contribuição nesse processo todo. Em relação às edições anteriores, caracterizou-se por alguns avanços importantes enquanto “fórum”, dos quais destaco dois: na sua dinâmica interna, garantiu um envolvimento bem maior dos participantes nos diversos debates, interagido na discussão sobre caminhos e perspectivas para a teologia nos seus diversos contextos e frente aos desafios globais; por outro lado, houve o empenho por uma maior aproximação das dinâmicas, debates e espaços do FSM, tendo em vista a interlocução com outros públicos deste evento. Essa segunda proposta não avançou como o esperado devido a problemas com a infraestrutura do FSM, mas foi importante como proposta.
A realização do FSM em Dacar, Senegal, isto é, em contexto africano, se deu como expressão de solidariedade com a história de luta e resistência dos povos africanos. Discutir temas globais no contexto dessa realidade local é algo que impacta de um modo particular pela aproximação concreta com a realidade local. O dia do FSM dedicado exclusivamente à África e à diáspora africana alargou as expectativas de conhecer de forma mais articulada um pouco da realidade do continente africano. Infelizmente, os limites do FSM também não favoreceram esta aproximação.
De qualquer forma, no conjunto, vejo que os dois fóruns tratados deram conta em grande medida de cumprir seu papel em Dacar.

IHU On-Line – Que metodologia foi utilizada na organização do evento?
Cleusa Andreatta – O Fórum Mundial de Teologia e Libertação sempre acompanha o Fórum Social Mundial no local e na época de sua realização (Porto Alegre – 2005; Nairóbi – 2007; Belém – 2009; e Dacar – 2011). Enquanto em suas edições anteriores o FMTL era realizado em dias anteriores ao FSM, para Dacar ele teve como proposta uma metodologia que possibilitasse uma maior interação com o FSM, sem deixar de garantir uma agenda propícia para a reflexão e produção teológica. Assim, o FMTL iniciou no dia 05 de fevereiro, um dia antes do FSM, com uma boa integração do grupo e com dois grandes painéis: um painel de abertura sobre Bens comuns universais no horizonte das tradições religiosas, com presença de teólogos e teólogas dos diversos continentes; e um painel sobre Contextualização e desafios da teologia Contemporânea, trazendo a situação da teologia em diversos contextos de proveniência dos participantes do Fórum e oportunizando partilha de experiências.
Para os dias seguintes, a proposta foi inserir-se na dinâmica do FSM. Após uma visita à ilha de Gorée  e a participação na marcha de abertura no dia 06 de fevereiro, o FMTL inseriu-se no território e dinâmica FSM com diversas temáticas abertas ao público em geral. Assim, oferecemos e participamos de oficinas no dia dedicado inteiramente à África e à diáspora africana e, no dia seguinte, com uma variedade de temas candentes no atual contexto. Também se buscou favorecer aos participantes do FMTL a participação e integração em outras atividades do FSM podendo, em vista de um “ver-escutar” a realidade e discernir desafios e possibilidades, abrir caminhos e perspectivas para a teologia e suas contribuições para “um outro mundo possível”. Esta proposta não avançou com foi planejado devido às dificuldades com a infraestrutura e a divulgação falha da programação geral FSM. A principal limitação foi a interlocução quase nula com outros públicos e sujeitos do FSM devido a certa dispersão que se criou. De qualquer forma, as atividades foram intensas, com bom número de participantes, bem dinâmicas e enriquecedoras para o debate teológico.
No dia reservado pelo FSM para assembleias por temas de interesse, o FMTL realizou um seminário que foi o seu ponto alto. Esse seminário teve como objetivo discutir tarefas, categorias, métodos e linguagens mais adequados para uma teologia relevante nos próximos anos, considerando as implicações de uma consciência planetária sensível a pluralidade contextual.
Enfim, discutir qual a epistemologia mais adequada da diversidade, pluralidade e complexidade que caracteriza o cenário mundial de hoje. Esse foi, sem dúvida, o momento mais rico e marcante do FMTL/2011, pela densidade da reflexão em grupos e no grande plenário, pela troca de saberes, pelo levantamento de desafios e perspectivas para a reflexão teológica.

IHU On-Line – Segundo informações da imprensa, a organização dos eventos foi bastante precária. Quais os maiores problemas?
Cleusa Andreatta – Faltou uma boa infraestrutura, sim. Mas este fato traduz outras questões e dificuldades. Recebemos a informação de que pouco tempo antes do início do FSM houve a troca do reitor da universidade (pública) Cheikh Anta Diop, local de realização do evento. O novo reitor não assumiu os acordos feitos pelo seu antecessor e não dispensou as aulas. Com isso, pior do que a redução dos espaços para as atividades foi a improvisação que não possibilitou uma divulgação da programação do FSM com indicação dos respectivos locais. Além disso, a tiragem de cópias da programação era muito pequena considerando a grande procura. Os grupos que foram rápidos em se organizar e disputar os poucos espaços existentes ficaram bastante isolados, com dificuldade de interlocução com outros sujeitos do FSM. Ao lado de salas e tendas em que estavam acontecendo as poucas atividades do Fórum na universidade aconteciam normalmente as aulas, com alunos e professores totalmente alheios ao evento. Penso que esse fato também sinalizou para a dificuldade das equipes de organização do FSM agilizarem soluções para o problema.
O resultado é que essa situação realmente prejudicou o FSM e, no nosso caso, o FMTL, porque tornou inviável propostas longamente preparadas.

IHU On-Line – Você participou da marcha de abertura do Fórum Social Mundial. Como foi esse momento?
Cleusa Andreatta – A marcha de abertura é sempre um marco nos FSMs e sempre acho difícil descrever. De qualquer forma, sempre impacta como referência simbólica: marcha, caminhada, povo em movimento; muitas bandeiras, muitas vozes, muitas expressões de empatia e solidariedade; diversidade de cores e tons, diversidade de grupos e movimentos caracterizados com suas camisetas, faixas, palavras de ordem, coreografias; diversidade de delegações mobilizadas com suas bandeiras, cantos, palavras de ordem.
Em meio à caminhada chamou-me bastante a atenção a grande participação da juventude, a diversidade de movimentos e associações de mulheres (a maioria da África) e a grande delegação da Via Campesina.
Ao longo de todo o trajeto, como nas outras marchas, havia muita gente nos dois lados da rua, assistindo, olhando, numa situação difícil de ser avaliada em seu significado. De qualquer modo, isso me faz ver a marcha como uma forma de o Fórum marcar sua presença no local, garantir ao menos um pouco de visibilidade pública.
A marcha também sempre reserva surpresas, como o encontro de pessoas e grupos conhecidos em outras épocas e lugares, e a possibilidade que oferece para conhecer novos grupos e iniciativas, sendo que já ao longo do caminho os participantes do Fórum vão divulgando suas atividades.

IHU On-Line – Quais foram os grandes temas abordados nos dois encontros?
Cleusa Andreatta – No FMTL, além do debate sobre Bens comuns universais no horizonte das tradições religiosas e sobre teologias contextuais, foram debatidos em workshops os seguintes temas: A crítica do Espírito do Capitalismo Global e os direitos sociais globais; Teologia e paz – de que teologia precisamos; Crise civilizatória, alternativas, espiritualidade; Sabedoria dos povos e Ética Mundial; Comunidades Eclesiais de Base e Teologias da Libertação; Cristãos e muçulmanos: o caminho do diálogo e da libertação; A África em tumulto: uma resposta de cura e espiritualidade; Feminismos e libertação: desafios teológicos para o século XXI; Heranças religiosas africanas e os desafios para uma teologia afro-americana da libertação; Religiões, migração e libertação.
No seminário de teologia realizado dentro do FMTL, o grande tema abordado foi a questão de uma epistemologia para a teologia da libertação que seja capaz de dar conta dos desafios e possibilidades que emergem das questões da atualidade em sua configuração em contextos locais, mas enquanto vinculadas a situações e desafios globais.

IHU On-Line – Como é possível, a partir das discussões do FMTL, pensar uma teologia do pluralismo religioso?
Cleusa Andreatta – A teologia do pluralismo religioso esteve presente do FMTL junto de outros temas abordados. Algumas questões e situações aí vividas e evidenciadas sinalizam alguns aspectos a se ter em conta.
Estivemos num contexto de presença muçulmana majoritária e não conseguimos a participação de nenhum muçulmano em nosso fórum de teologia. Encontramos algumas respostas práticas para isso, mas permaneceu uma pergunta aberta pelas razões dessa ausência. Entretanto, Dacar/Senegal tem como característica uma convivência pacífica e respeitosa entre cristãos e muçulmanos, com importantes situações de colaboração na vida cotidiana. Penso que uma teologia “formal” do pluralismo religioso deve debruçar-se sobre experiências concretas de encontro, convivência e diálogo inter-religioso como essa e tirar as consequências para a reflexão teológica.
A questão do pluralismo foi abordada em diferentes momentos em conexão com outros temas tratados no Fórum. O insistente destaque a termos como pluralidade, pluralismo, diversidade, diferenças, interculturalidade ao longo de todo o fórum e em relação a diversos temas e questões, aponta para uma teologia do pluralismo religioso que deve desenvolver-se na intersecção ou em interlocução com outras questões como paz/violência, crise ecológica, gênero, cultura/interculturalidade, entre outras.
Além disso, o FMTL, de diferentes modos, tornou presente a diversidade de experiências religiosas. As experiências das pessoas e comunidades estão estreitamente vinculadas ao contexto concreto de suas vidas, onde se entrelaçam as diversas dimensões do seu existir cotidiano e se consolidam as condições de possibilidade das estruturas de sentido. Uma teologia do pluralismo religioso precisa tratar com profundo respeito e reconhecimento as diferentes experiências religiosas, em sua singularidade na aproximação ao mistério de Deus. Por outro lado, destaca-se de novo que toda a teologia precisa ter sempre presente o que aprendemos da teologia negativa e apofática: o Mistério de Deus não se deixa limitar por nenhuma experiência ou conhecimento que dele podemos ter. Esse reconhecimento mantém a abertura da fé para reconhecer as possibilidades de Deus se manifestar e ser reconhecido em diferentes experiências religiosas.

IHU On-Line – Quais as perspectivas para os dois fóruns no próximo ano?
Cleusa Andreatta – Quanto a datas e lugar não se tem nada ainda definido. Não me considero nesse momento apta para falar de perspectivas para o FSM. Para o FMTL, destacou-se a importância de levar adiante o processo no período “interfórum”. O que e como vamos fazer em termos de FMTL até a próxima edição? Em Dacar se acentuou a sugestão de investir em fóruns locais, regionais, num compromisso, mantendo uma articulação em rede com os diferentes contextos via internet (sites, mídias sociais). Essa é uma tarefa a ser levada adiante, de forma aberta, garantindo espaço para as diferenças, a interação e busca conjunta.


Fonte: IHU






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