23 de novembro de 2010

[FENDH] Ex-presa faz campanha por libertações no Irã (Folha de São Paulo)


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CLAUDIA ANTUNES
EM SÃO PAULO

Filha de pai iraniano e mãe japonesa, nascida nos EUA há 33 anos, Roxana Saberi teve uma trajetória de reviravoltas. Em busca de uma bolsa acadêmica, foi miss Dakota do Norte em 1997. Fez mestrado em jornalismo nos EUA e em relações internacionais na Inglaterra, e mudou-se para o Irã para trabalhar como repórter para veículos ocidentais em 2003, na Presidência do reformista Mohammad Khatami. Ficou no país para escrever um livro depois que sua credencial de jornalista foi cassada no governo do ultraconservador Mahmoud Ahmadinejad.

Presa em janeiro de 2009, Saberi foi acusada de espionagem pela linha-dura que comanda o Judiciário. No pavilhão 209 da prisão de Evin, sofreu tortura psicológica e assinou uma confissão --ato do qual afirma ter se arrependido ao ver a resiliência das presas de consciência iranianas, e que negou no tribunal.

Teve a pena de oito anos comutada após cem dias, depois de forte pressão internacional por sua libertação.

Ela conta sua história em "Entre Dois Mundos" (editora Larousse), livro que veio lançar no Brasil, trazendo sua campanha para a libertação dos cerca de 500 presos políticos iranianos, incluindo duas antigas companheiras de cela que lhe deram "força e coragem", Mahvash Sabet and Fariba Kamalabadi, da religião Baha'i. Ambas cumprem sentenças de dez anos na prisão Rajai Shahr, fora de Teerã.

"Sinto que tenho uma responsabilidade [com os que ficaram]", diz Saberi, que cita também o blogueiro Hossein Derakhshan, condenado a 19,5 anos, e a jornalista Jile Yaghoob, condenada a 1 ano de prisão. Os casos estão detalhados em seu site na internet (roxanasaberi.com).

Abaixo, a íntegra de sua entrevista à Folha, feita em São Paulo na última sexta-feira, em que diz que o Brasil deve usar sua influência no Irã para condenar as violações e que os iranianos apoiam o programa nuclear do país.

FOLHA - Você hoje se definiria como jornalista ou como ativista?
Roxana Saberi - É difícil dizer porque ainda escrevo para jornais, normalmente artigos de opinião sobre direitos humanos no Irã. Não tenho feito outro tipo de trabalho jornalístico desde que fui libertada. De certo modo, sou agora uma defensora dos direitos humanos no Irã porque sinto que seria difícil sair daquela situação e não dizer nada sobre as pessoas que ficaram para trás e merecem a liberdade.
Por que eu fui libertada? Porque tinha um passaporte americano e o governo japonês se envolveu também. Porque trabalhava para grandes grupos de mídia no Ocidente e eles denunciaram minha situação. Mas as outras pessoas não são conhecidas fora do país. Sinto que tenho uma responsabilidade [de atuar em prol dos presos políticos] e também quero fazê-lo.

O governo brasileiro argumenta que prefere agir nos bastidores do que denunciar publicamente violações. Qual a sua opinião?
O governo iraniano gosta de dizer que quando um governo fala, tem motivação política. Mas é mais difícil que falem isso de indivíduos. Se muitas pessoas se posicionarem em solidariedade com princípios de direitos humanos e democracia, podem fazer diferença.
Mas os governos também têm um papel. Ontem [na quinta-feira à noite], um comitê da [Assembleia Geral] da ONU passou uma resolução condenando violações de direitos humanos no Irã e pedindo que o Irã aja sobre elas. O Brasil se absteve. Por quê? Sei que fez uma declaração [de que se preocupa com os direitos humanos no Irã, mas não concorda que o tema seja tratado de modo "seletivo"].
Mas os governos podem fazer pressão por um relator especial de direitos humanos para o Irã, que não existe desde 2002. Desde 2005, o país não recebe outros relatores especiais [da ONU] para tortura, liberdade religiosa etc, apesar das solicitações.
Como o governo brasileiro tem boas relações com o Irã, suas palavras têm peso. Os direitos humanos são universais e todos os governos devem não apenas observá-los como defendê-los internacionalmente.

Fica claro no seu livro que mesmo a linha dura é sensível à imagem do país no exterior. Quais, na sua opinião, são as ações de pressão pelos direitos humanos mais eficazes? É melhor isolar o Irã ou ter relações com ele e assim tentar influenciar o regime?
Acho que os governos devem agir multilateralmente. Usar fóruns como o Conselho de Direitos Humanos da ONU para aprovar resoluções contra as violações de direitos humanos e aprovar a ida do relator especial de direitos humanos.
Também fala-se em como dar mais poder ao povo iraniano mantendo abertas suas linhas de comunicação. Atualmente há filtros na internet, apesar de muitos conseguirem driblá-los, e monitoramento na maior parte do tempo. Uma das ideias é garantir acesso à internet por satélite aos iranianos, e também evitar os esforços do governo para interferir nos sinais de TVs estrangeiras.
Pessoas comuns podem assinar petições, escrever cartas para funcionários do Irã na ONU, escrever cartas para seus próprios parlamentares, podem escrever artigos nos meios de comunicação, fazer manifestações pacíficas.
Quanto a haver engajamento com o Irã, acho que a porta para relações e negociações deve sempre estar aberta, porque quando a fechamos limita a possibilidade de uma resolução pacífica da disputa nuclear e outras. Mas claro que os direitos humanos sempre devem estar no topo.

Você acredita que seja possível aprovar o uso de satélites para que os iranianos acessem os meios de comunicação, uma vez que tantos governos também interferem nessas transmissões?
Alguns defensores de direitos humanos propuseram que sejam entregues a iranianos serviços de internet por satélite, apesar de haver desafios logísticos e outros. Também acredito que deva ser encontrado um modo de impedir que o Irã interfira nos sinais de TV por satélite. Os ministros do Exterior da União Europeia chamaram a interferência de "inaceitável", a a Human Rights Watch escreveu uma carta para o Eutelsat, que transmite canais em farsi como a BBC Persa [emissora pública britânica] e a Voz da América [do governo americano], pedindo que examine maneiras de enfrentar o problema.

Reportagens recentes na imprensa americana indicam que o governo Obama mantém operações secretas no Irã, com grupos separatistas etc. Esse tipo de operação ajuda a causa da democracia?
Eu não li os últimos jornais.

Me refiro a reportagens da "New Yorker" e a uma do "New York Times", de dois meses atrás.
Sei que as autoridades iranianas, quando ouvem essas informações, gostam de usá-las para seu argumento de que o regime está sob ameaça de espiões. Em nome de proteger a segurança nacional, aumentam a repressão contra os críticos, e os acusa de ser mercenários ou espiões dos EUA. Do outro lado, tenho certeza de que o Irã tem muitos espiões por todo o mundo, meus próprios captores falaram isso.

Os EUA falam muito de direitos humanos, e frequentemente são acusados de usá-los para fins políticos. Como essa contradição a afeta?
Acho que os EUA também deveriam falar das violações de direitos humanos em países que são seus aliados, por exemplo China ou Arábia Saudita. E observar os direitos humanos. Todos ouvimos falar de Guantánamo, Abi Ghraib, afogamento simulado [tortura praticada em centros de detenção americanos na "guerra ao terror"].
Meu pai me disse que um dia foi chamado no Tribunal de Teerã por um funcionário que perguntou por que ele ficava dizendo que eu não era espiã, se eu tinha confessado. Meu pai respondeu que [a confissão] teria que ser vista sob as condições em eu havia confessado, implicando que eu havia sido forçada. O funcionário replicou que haviam falado comigo numa atmosfera amistosa. Disse: "Isso não é a América, nós não fazemos afogamento simulado".
Quando a América não é fiel a princípios sobre os quais foi fundada, então outros governos podem fazer disso uma desculpa para seu próprio comportamento. Mas as violações em um país não as justificam em outro. O Irã gosta de dizer que não têm moral para criticá-lo, mas os direitos humanos são universais.

No livro, você sugere que sua prisão deveu-se a uma disputa entre grupos dentro do regime. Considera que ela foi aprovada pela direção do regime?
É difícil saber, porque o sistema não é transparente. Acho que deve ter havido algum conflito sobre se eu deveria ou não ser libertada. Mesmo depois da minha libertação, o ministro da Informação veio dizer que ainda achava que eu era uma espiã, apesar de o Judiciário ter me deixado ir, e claro que alguém acima do Judiciário deve ter decidido isso.
A decisão de me prender não teria acontecido se o promotor de Teerã e o ministro da Informação não estivessem a par e não tivessem aprovado. Não sei se o presidente Ahmadinejad sabia. Não é uma coisa insignificante prender uma iraniana-americana.
O promotor acabou perdendo sua posição depois das eleições do ano passado, acusado de mandar pretender tanta gente em Kahrizak, onde presos foram espancados e três foram mortos. Ele foi um dos oito punidos pelo Departamento de Estado dos EUA com congelamento de bens [no exterior] e proibição de viagens.

Você diz no livro que a repressão, que aumentou depois da reeleição de Ahmadinejad, pode levar pessoas que eram reformistas a se tornarem revolucionárias. Ainda acredita na possibilidade de reforma pacífica no Irã?
Depende de muitos fatores e do que o povo iraniano decidir. É imprevisível. Pode depender da economia, das sanções, de quem estiver no poder, de quem virá depois de Ahmadinejad, ou da morte do líder supremo [Ali Khamenei], que tem 71 anos.
Mas acho que é inevitável que o país caminhe para um sistema mais democrático, porque é o que muita gente quer. Dois terços da população têm menos de 30 anos, não haviam nascido na época da revolução [islâmica de 1979]. Claro que parte deles apoia o sistema, mas muitos não estão satisfeitos. E as mulheres estão cada vez instruídas no Irã, respondem por 65% das matrículas na universidade e têm reivindicações.

Como o programa nuclear e as sanções são vistas pela população iraniana em geral?
Houve três rodadas de sanções da ONU e sanções unilaterais dos EUA quando estive lá. As pessoas tinham começado a sentir os efeitos, alguns preços subiram por causa do aumento de custos para os comerciantes.
Mas eu vi muito apoio de iranianos comuns ao programa nuclear, embora as condições variassem. Alguns diziam que o país deveria manter o programa apesar das sanções, porque é seu direito. Uma minoria defendia a construção de armas nucleares, citando os exemplos vizinhos de Paquistão, Índia e Israel. Muitos defendiam o direito à energia nuclear, mas não a qualquer preço, e defendiam a cooperação com a comunidade internacional.
Depois das eleições do ano passado, acho que as sanções estão começando a apertar mais, o governo retirou subsídios de alguns produtos, os preços estão subindo. Temos que ver qual será a reação popular. As pessoas vão continuar a defender o programa a qualquer preço, vão culpar o governo, vão culpar estrangeiros?

O risco de um ataque israelense ao Irã tem sido um tema forte nos EUA. Como você vê essa possibilidade?
Acho que a rota diplomática é a melhor, claro. Sei que há argumentos a favor de um ataque ao Irã, segundo o qual diplomacia e sanções não estão funcionando, mas haverá muitas consequências negativas se houver um ataque. Em primeiro lugar, as vítimas civis. Eu sei que, se Israel atacar, vai dizer que os alvos são bases militares, mas pode haver civis envolvidos. O Irã pode ganhar a simpatia de muitos países porque não atacou ninguém e foi atacado. Pode sair do TNP [Tratado de Não Proliferação] e reduzir a cooperação com a comunidade internacional.
Ao mesmo tempo, será mais uma desculpa para a linha-dura reprimir os críticos e os pensadores independentes dentro do país. Então pode piorar a situação dentro do Irã. Quanto à possibilidade de união nacional diante de um ataque, é difícil saber. Desde o ano passado aumentou o fosso entre uma boa parte da população e o regime. Claro que ainda tem apoio, mas perdeu sua legitimidade para muita gente.
De todo modo, um ataque militar não mudaria o regime. Isso requereria um grande ataque, e não um bombardeio localizado. Talvez o objetivo seja atrasar o programa nuclear em alguns anos, mas, como dizem, você pode bombardear instalações, mas não o conhecimento. Eu acho que o Irã tem direito à energia nuclear para fins pacíficos, mas também que o país não teve boa vontade como deveria ter tido em dar informações sobre seu programa aos inspetores internacionais. Mas quero uma resolução pacífica para o conflito.

Como você compara a situação da mulher no Irã e em outros países da região?
Em comparação com a Arábia Saudita, as mulheres iranianas podem dirigir, podem manter seu sobrenome no casamento, podem ser proprietárias. Mas elas também enfrentam muitas limitações: sua herança é metade da do homem, seu testemunho vale metade do masculino, é difícil conseguir a custódia dos filhos e o divórcio.
Elas enfrentam uma série de limitações tanto por causa de leis quanto por uma mentalidade patriarcal. Acho que isso está mudando gradualmente, e muitas das mulheres que vão à universidade aumentam suas demandas em relação à sociedade e ao regime. Foi iniciada uma campanha pela mudança das leis, que tinha o objetivo de conseguir 1 milhão de firmas, mas acabou não sendo concluída porque houve muita perseguição do governo.
Acho que há um despertar das mulheres. Muitas das que chegam à universidade saem de pequenas cidades e vivem em dormitórios nos grandes centros, onde são expostas a novas ideias. Nas eleições do ano passado, vimos muitas mulheres em campanha e na linha de frente dos protestos contra o resultado. Claro que há mulheres conservadoras que têm opinião diferente sobre os direitos femininos.

Você vivia sozinha num apartamento em Teerã. Isso não causou estranhamento?
Em Teerã há algumas mulheres solteiras que vivem sozinhas. Mas ainda é bastante raro, em especial no interior. No meu caso, por eu ter sido criada em outro país, a sociedade me via de maneira diferente. E eu tinha bons vizinhos, como a viúva que cozinhava para mim porque tinha pena de me ver vivendo sozinha.

O Movimento Verde [ligado ao ex-candidato à Presidência Mir Hossein Mousavi] tem futuro?
Quando falamos do movimento verde há diferentes definições. Alguns querem reforma dentro do sistema, alguns um novo sistema, outros um sistema secular. No que concordam é na rejeição do status quo. A curto prazo sua situação é difícil, devido à repressão, mas em longo prazo, quando houver uma abertura, todas essas reivindicações virão à superfície.

O nome República Islâmica é uma contradição em si. Essas duas faces do regime estão sempre em choque. Quando você fala de uma abertura no Irã, ainda vê essa interseção entre religião e Estado?
Esse é um grande debate. Algumas pessoas falam que será uma República Islâmica apenas no nome, outras que o islã vai estar apenas na Justiça de família, ou talvez que deva ser uma República Islâmica sem um líder supremo, apenas com os dirigentes eleitos. Algumas pessoas dizem que há versões diferentes do que uma República Islâmica pode ser.
No momento, há muita contradição. Na Constituição há a soberania divina, representada pelo líder supremo, e a soberania popular, representada pelo Parlamento e demais dirigentes eleitos. O líder supremo é o guardião da jurisprudência islâmica. Como o povo pode ter a soberania se o líder supremo a tem?
E a Constituição fala às vezes dos direitos do povo segundo os princípios islâmicos. Mas há diferentes interpretações desses princípios, e na prática quem decide é quem está no poder, muitas vezes em seu próprio benefício.

Há algo mais que você gostaria de dizer?
Algumas das pessoas que eu conheci na prisão, e parte continua presa, eu as admiro muito. Apesar de tantas pressões, continuam defendendo pacificamente direitos que beneficiariam a todos os iranianos, como liberdade de expressão, de manifestação, de associação. E pagam um custo alto, que afeta suas famílias. Mas mesmo assim não cedem à pressão de seus captores para declarar mentiras sobre si próprios e os outros. Acho que podemos aprender muito com essas pessoas porque em tempos difíceis elas se mantêm fieis a seus princípios e tentam transformar esse desafio numa oportunidade de crescimento e em exemplo para a sociedade.

http://www1.folha.uol.com.br/mundo/833599-ex-presa-faz-campanha-por-libertacoes-no-ira-leia-entrevista-na-integra.shtml

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