5 de janeiro de 2010

Fome mundial: as falhas da cúpula de Roma

Seg, 04 de Janeiro de 2010 17:26

Moisés Balestro - UnB

Em 1996, o documento final do encontro para eliminação da fome no mundo, conhecido como Declaração de Roma, afirmava: "consideramos intolerável que mais de 800 milhões de pessoas em todo o mundo, e especialmente em países em desenvolvimento, não tenham comida suficiente para satisfazer suas necessidades nutricionais básicas." Doze anos depois, o número de subnutridos passou de 923 para quase um bilhão (dados da FAO, em The State of Food Security around the World 2008).


O fiasco ou relativo fracasso da última cúpula de Roma no combate à fome deve ser visto sob um olhar mais atento. O primeiro passo é perceber o caráter execessivamente genérico e contraditório das recomendações desde a cúpula de 1996. As cúpulas de Roma parecem se mover entre o conselheiro Acácio de Eça de Queiroz e a célebre frase de Tancredi em Il Gattopardo: "se desejamos que tudo continue como está, é necessário que tudo se modifique." Um exemplo é o trecho retirado da declaração de 1996, "é necessário atingir aquelas pessoas e áreas que mais sofrem da fome e má nutrição, identificar as causas e empreender ações para melhorar a situação." Nada mais acaciano.


Por outro lado, no documento da FAO de 2008, as recomendações para redução da fome no mundo passam pela sugestão de mudanças que levem mais máquinas, implementos, tratores, bombas de água e colheitadeiras e utilização de melhores fertilizantes em abundância. As recomendações inserem-se plenamente no paradigma da "revolução verde". Uma "revolução" que surgiu com o discurso impoluto de acabar com a fome no mundo há cerca de 40 anos atrás.


As recomendações e sugestões de mudança da cúpula de Roma constituem mais do mesmo. No subtexto das recomendações, há ambigüidades que podem parecer desapercebidas aos olhos do leigo. Fala-se em manter a biodiversidade e aumentar a resiliência dos sistemas de produção de alimentos para enfrentar os desafios colocados pela mudança climática. Esta "resiliência" aumentada é o mesmo argumento utilizado em defesa dos transgênicos utilizado pela Monsanto.


Nos objetivos estratégicos da Cúpula de Roma em Segurança Alimentar de 2009, merece destaque a reversão do declínio no financiamento da produção agrícola nos países em desenvolvimento e a promoção de novos investimentos para aumentar a produção agrícola sustentável. A fim de atingir os objetivos, são enumerados cinco princípios para a Segurança Alimentar Global Sustentável, mas nenhum deles aponta para a necessidade de transição para um outro modelo de produção agrícola. De um modo geral, os princípios se referem à eficiente e eficaz gestão e alocação de recursos, persistindo a tese de que o problema não é o modelo de produção em si, mas a sua implementação e gestão.


A incapacidade das cúpulas de Roma em apresentar algo substantivo para a solução do problema da fome do mundo contribuiu para o seu fracasso. O fiasco do encontro de Roma não é algo casual, mas sinaliza um esgotamento e uma profunda descrença com os resultados do paradigma hegemônico na organização na produção e da distribuição dos alimentos no mundo. É talvez na produção de alimentos onde mais se ressente a ausência de regulação. As cadeias agroalimentares globalizadas são dominadas por corporações transnacionais profundamente imbricadas com a especulação financeira e distanciadas das necessidades de soberania alimentar.


As desconexões no tempo e no espaço entre consumo e produção fazem do alimento um ativo de especulação financeira, causando oscilações de preço que guardam relativa autonomia frente à demanda de alimentos por seres humanos. Paralelamente, aumenta a concentração da terra nas mãos de fundos de investimento, dificultando o acesso a este meio de produção vital. Além disso, o modelo da "revolução verde" intensivo em capital e em insumos tende a excluir um número crescente de produtores rurais, especialmente nos países mais pobres e mais atingidos pela fome.


A Foodfirst Information and Action Network (FIAN), organização internacional de direitos humanos que luta pela realização do direito a uma alimentação adequada, criticou a declaração final da cúpula de Roma como um documento que não apresenta alternativa para enfrentar a fome e promover o direito à alimentação. A cúpula sinaliza a necessidade de uma investigação mais consistente das causas da fome.


Um caminho profícuo parece ser a construção de uma nova e democrática governança do regime alimentar em escala mundial. Como diz Harriet Friedmann, alimento saudável e uma agricultura ambientalmente consistente precisam estar enraizados nas economias locais. A produção de alimentos precisa estar vinculada a uma agricultura controlada por muitos e em harmonia com a natureza.



fonte: www.unb.br - Universidade de Brasília

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