Prezadíssim@s,
Envio aqui meu artigo de hoje na Folha de S.Paulo, para seu conhecimento.
Abraços,
Roseli
Meu artigo
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft2903201002.htm
São Paulo, segunda-feira, 29 de março de 2010
OPINIÃO
De pecados e crimes
ROSELI FISCHMANN
ESPECIAL PARA A FOLHA
O noticiário sobre pedofilia, atingindo religiosos da Igreja Católica,
inclusive da alta hierarquia, traz tantos dados que chocam, que o
Vaticano publicou editorial atacando a imprensa internacional por
cumprir seu papel, qual seja, o de informar. Acostumada a tratamento
diferenciado, muitas vezes privilegiado, por parte da mídia, com
desvantagem para os demais grupos religiosos, a hierarquia católica
reage de forma hostil à impossibilidade que teve a imprensa de
postar-se como cúmplice de crimes inaceitáveis, por omissão.
É certo que as relações das religiões com os poderes terrenos são
assunto delicado e polêmico. Investidos de aura suprahumana, para os
que crêem neste ou naquele culto, com facilidade pode ocorrer de
buscarem transbordar, para o plano meramente político, o poder
espiritual que lhes é atribuído pela religião, como instituição humana.
Decorre daí a facilidade de, em nome da divindade, fazer acordos
internacionais (como a concordata com a Santa Sé a que se curvaram
políticos do Brasil), desenvolver articulações políticas e facilmente
ganhar espaço, onde outros dependem do voto e da legitimidade. O uso
do poder espiritual para obter benesses humanas é tanto mais perigoso,
quanto mais confunde argumentos que invocam caridade, para alcançar
privilégios materiais, suprimindo direitos de outros.
Ao potencializar o poder espiritual pela união ao poder político, mera
e complexamente humano, a expectativa é de reunir os benefícios das
duas esferas. Engendrada nas altas hierarquias, repercute em outros
níveis de forma imprevisível. Enquanto alguns religiosos tomam o
compromisso de defesa dos direitos, outros enveredam por caminho
oposto. Copiando a má prática humana na política, esperam a máxima
visibilidade dos méritos e a completa impunidade dos erros. Quando
ocorre alguma "escorregada", que em outros seres humanos, "comuns",
será chamado de crime, considera-se "natural" a invisibilização e o
silêncio, garantindo a impunidade, pelo desconhecimento público.
Vale lembrar que a Igreja Católica, por sua associação milenar, desde
Constantino, ao poder terreno, tem digerido mal a independência e
autonomia laica dos Estados em relação aos cultos, processo
fortalecido a partir da Revolução Francesa - e conseqüentemente,
digere mal a autonomia da cidadania e a soberania do Estado.
Por ser instituição burocratizada altamente complexa, a diversidade
interna da Igreja Católica lhe permite um portfólio de exemplos de
religiosos com atuação religiosa e social impecável, para contrapor
aos abusos agora denunciados. O reconhecimento do drama vivido pelas
vítimas, mesmo a indenização pecuniária, nada retira do caráter
irreversível do dano causado a quem sofreu a violência sexual, em
particular sendo criança, que perdeu o direito à inocência, pela ação
de quem supunha ser seu guia. O uso da autoridade como forma
privilegiada de cometer o abuso é aviltante para as relações de
autoridade e para o próprio sentido educativo dessas relações.
A lentidão em reconhecer os casos de abuso e pedofilia, em diferentes
países, como o Brasil, é a outra face da moeda, que credita à Igreja
Católica o poder de a tudo julgar e tudo determinar na vida humana,
inclusive interferindo em políticas públicas. É o caso das pressões
sobre o 3º PNDH, para os temas de retirada dos símbolos religiosos de
estabelecimentos públicos, reconhecimento da autonomia das mulheres,
em caso de aborto, e das uniões homoafetivas, incluindo adoção de
filhos. Ignora que seus fiéis, se convictos, não serão obrigados a
coisa alguma que contrarie sua doutrina, por uma lei que se proponha
como possibilidade.
Porque a lógica do interesse público precisa pautar-se por atender a
toda a cidadania, sem discriminação, cabendo às denominações
religiosas convencer seus membros a que atendam as determinações
morais que pregam, definindo o que é pecado, e não ao Estado, que lida
apenas com o que é crime. Quem for convicto seguirá os ditames da
religião sem titubear, ainda que as leis ofereçam possibilidades a si
vetadas pelas normas religiosas. Se uma denominação religiosa proíbe o
álcool, não será a existência de bares que convencerá o seu adepto a
provar da bebida.
Ao tomar conhecimento de infratores em suas fileiras, e imediatamente
encobri-los, o que o Vaticano reitera é sua disposição de ser soberano
por sobre a ordem humana, que é plural do ponto de vista religioso e
de consciência, mesmo quando os atos cometidos - pecados ou não - são
terrível e simplesmente enquadráveis como possíveis crimes, cabendo,
pois, ao Estado investigar e julgar, de forma pública e transparente,
o que apenas engrandecerá a instituição religiosa por abrir-se com
coragem, prevenindo semelhantes situações.
----------------------------------------------------------------------------
----
ROSELI FISCHMANN é professora do Programa de Pós-Graduação em Educação
da USP, coordena o Núcleo de Educação em Direitos Humanos da Faculdade
de Humanidades e Direito da Universidade Metodista de São Paulo.
Publicou, entre outros, o livro "Estado Laico" (Memorial da América
Latina).
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inclusive da alta hierarquia, traz tantos dados que chocam, que o
Vaticano publicou editorial atacando a imprensa internacional por
cumprir seu papel, qual seja, o de informar. Acostumada a tratamento
diferenciado, muitas vezes privilegiado, por parte da mídia, com
desvantagem para os demais grupos religiosos, a hierarquia católica
reage de forma hostil à impossibilidade que teve a imprensa de
postar-se como cúmplice de crimes inaceitáveis, por omissão.
É certo que as relações das religiões com os poderes terrenos são
assunto delicado e polêmico. Investidos de aura suprahumana, para os
que crêem neste ou naquele culto, com facilidade pode ocorrer de
buscarem transbordar, para o plano meramente político, o poder
espiritual que lhes é atribuído pela religião, como instituição humana.
Decorre daí a facilidade de, em nome da divindade, fazer acordos
internacionais (como a concordata com a Santa Sé a que se curvaram
políticos do Brasil), desenvolver articulações políticas e facilmente
ganhar espaço, onde outros dependem do voto e da legitimidade. O uso
do poder espiritual para obter benesses humanas é tanto mais perigoso,
quanto mais confunde argumentos que invocam caridade, para alcançar
privilégios materiais, suprimindo direitos de outros.
Ao potencializar o poder espiritual pela união ao poder político, mera
e complexamente humano, a expectativa é de reunir os benefícios das
duas esferas. Engendrada nas altas hierarquias, repercute em outros
níveis de forma imprevisível. Enquanto alguns religiosos tomam o
compromisso de defesa dos direitos, outros enveredam por caminho
oposto. Copiando a má prática humana na política, esperam a máxima
visibilidade dos méritos e a completa impunidade dos erros. Quando
ocorre alguma "escorregada", que em outros seres humanos, "comuns",
será chamado de crime, considera-se "natural" a invisibilização e o
silêncio, garantindo a impunidade, pelo desconhecimento público.
Vale lembrar que a Igreja Católica, por sua associação milenar, desde
Constantino, ao poder terreno, tem digerido mal a independência e
autonomia laica dos Estados em relação aos cultos, processo
fortalecido a partir da Revolução Francesa - e conseqüentemente,
digere mal a autonomia da cidadania e a soberania do Estado.
Por ser instituição burocratizada altamente complexa, a diversidade
interna da Igreja Católica lhe permite um portfólio de exemplos de
religiosos com atuação religiosa e social impecável, para contrapor
aos abusos agora denunciados. O reconhecimento do drama vivido pelas
vítimas, mesmo a indenização pecuniária, nada retira do caráter
irreversível do dano causado a quem sofreu a violência sexual, em
particular sendo criança, que perdeu o direito à inocência, pela ação
de quem supunha ser seu guia. O uso da autoridade como forma
privilegiada de cometer o abuso é aviltante para as relações de
autoridade e para o próprio sentido educativo dessas relações.
A lentidão em reconhecer os casos de abuso e pedofilia, em diferentes
países, como o Brasil, é a outra face da moeda, que credita à Igreja
Católica o poder de a tudo julgar e tudo determinar na vida humana,
inclusive interferindo em políticas públicas. É o caso das pressões
sobre o 3º PNDH, para os temas de retirada dos símbolos religiosos de
estabelecimentos públicos, reconhecimento da autonomia das mulheres,
em caso de aborto, e das uniões homoafetivas, incluindo adoção de
filhos. Ignora que seus fiéis, se convictos, não serão obrigados a
coisa alguma que contrarie sua doutrina, por uma lei que se proponha
como possibilidade.
Porque a lógica do interesse público precisa pautar-se por atender a
toda a cidadania, sem discriminação, cabendo às denominações
religiosas convencer seus membros a que atendam as determinações
morais que pregam, definindo o que é pecado, e não ao Estado, que lida
apenas com o que é crime. Quem for convicto seguirá os ditames da
religião sem titubear, ainda que as leis ofereçam possibilidades a si
vetadas pelas normas religiosas. Se uma denominação religiosa proíbe o
álcool, não será a existência de bares que convencerá o seu adepto a
provar da bebida.
Ao tomar conhecimento de infratores em suas fileiras, e imediatamente
encobri-los, o que o Vaticano reitera é sua disposição de ser soberano
por sobre a ordem humana, que é plural do ponto de vista religioso e
de consciência, mesmo quando os atos cometidos - pecados ou não - são
terrível e simplesmente enquadráveis como possíveis crimes, cabendo,
pois, ao Estado investigar e julgar, de forma pública e transparente,
o que apenas engrandecerá a instituição religiosa por abrir-se com
coragem, prevenindo semelhantes situações.
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ROSELI FISCHMANN é professora do Programa de Pós-Graduação em Educação
da USP, coordena o Núcleo de Educação em Direitos Humanos da Faculdade
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Publicou, entre outros, o livro "Estado Laico" (Memorial da América
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