19/03/2012 - 14h56
Brasília - No último dia 14 de março, o Conselho Curador da EBC realizou mais uma audiência pública para discutir a permanência, ou não, na programação da TV Brasil e da Rádio Nacional de Brasília dos programas católicos A Santa Missa e Palavras de Vida, vinculados à Arquidiocese do Rio de Janeiro, e do programa evangélico Reencontro, ligado à Igreja Batista, de Niterói. Os programas foram herdados da extinta Radiobras e da TVE do Rio e estão no ar há mais de 30 anos. A Rádio Nacional de Brasília, por exemplo, transmite a missa dominical, de orientação católica, desde a inauguração da cidade.
O debate envolvendo a transmissão dos programas religiosos teve início
em 2009, a partir de comunicação do público à ouvidoria criticando a
manutenção de programas de cunho religiosos na grade da TV Brasil.
A primeira manifestação, que desencadeou o debate, chegou à ouvidoria
no dia 21 de março de 2009, feita pelo telespectador Paulo Augusto Cunha
Libânio, que dizia:
“A Constituição Federal de 1988 foi bem clara ao afirmar, em seu Artigo
19, Inciso 1, que 'é vedado à União, aos estados, ao Distrito Federal e
aos municípios: estabelecer cultos religiosos, subvencioná-los,
embaraçar seu funcionamento ou manter com eles relações de dependência
ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse
público'. Portanto, a existência de programas de cunho religioso na TV Brasil, uma emissora pública, é uma afronta à Constituição. Exijo, na condição de cidadão brasileiro, que a TV Brasil
retire todos os programas de cunho religioso da sua grade de
programação Caso contrário, caberá denúncia ao Ministério Público e,
possivelmente, uma ação civil pública contra a TV Brasil. O Estado brasileiro é um Estado laico! Respeitem a nossa Constituição!”
Depois dessa, vieram outras manifestações públicas. Algumas reclamando
da falta de pluralidade e outras pedindo a retirada dos cultos
religiosos da programação da TV. Em março de 2010, o conselheiro Daniel
Aarão Reis Filho chamou a atenção sobre a importância de se discutir a
presença das religiões na TV Brasil, ao ressaltar que a
religiosidade é uma dimensão absolutamente fundamental para o povo
brasileiro, e sugeriu uma audiência pública sobre essa questão (ata da
reunião do conselho no dia 30 de junho de 2010).
Em agosto de 2010, o Conselho Curador decidiu lançar edital de consulta
pública para obter contribuições sobre a política de produção e
distribuição de conteúdos de cunho religioso pelos veículos da EBC,
considerando o Parecer nº 01/2010 da Câmara de Cultura, Educação,
Ciência e Meio Ambiente do Conselho Curador, disponível na página
eletrônica: www.ebc.com.br/conselho-curador/.
A consulta foi concluída no mês de outubro e, ao todo, 141
contribuições de pessoas físicas e jurídicas serviram de base para o
parecer da câmara recomendar a substituição dos programas que estavam
sendo veiculados por outros em que a religiosidade no Brasil seria
tratada de um ponto de vista plural, contemplando todas as religiões.
Depois de muitas discussões, o Conselho Curador aprovou, no dia 22 de
março de 2011, a resolução apresentada pela câmara que determina que os
programas religiosos devem sair do ar em setembro de 2011, ao mesmo
tempo em que propõe que a Diretoria da EBC fique
responsável por apresentar alternativas de programação, respeitando o
critério de diversidade para compor a faixa religiosa na TV Brasil e
nas rádios. De março a setembro, mês que se encerrariam as
transmissões, a ouvidoria recebeu 87 reclamações, 2 a favor e 85 contra a
decisão do Conselho Curador. Em setembro, uma semana antes de terminar o
prazo, a Justiça Federal concedeu liminar à Arquidiocese do Rio de
Janeiro garantindo a permanência dos programas na grade da Rádio Nacional de Brasília e da TV Brasil.
Até o dia da audiência, o impasse permaneceu, porque os programas ainda
estão no ar por meio de ações de antecipação de tutela impetradas na
Justiça Federal pela Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro e pela Igreja
Batista de Niterói. Embora a audiência pública não tenha o poder de
decidir sobre a permanência ou não dos programas religiosos na
programação da TV e da rádio, pode contribuir para aprofundar o debate
sobre a pluralidade de credos religiosos que compõem a nação brasileira
em veículos públicos de comunicação. Na audiência do dia 14 de março, a
ouvidoria aproveitou para recolher depoimentos de representantes de
diversos credos religiosos, a fim de saber o que pensam sobre a questão.
Para a sacerdotisa da Igreja da Bruxaria (Abrawicca) Márcia Maria
Bianchi, a audiência pública é imprescindível para que a sociedade
participe e demonstre que as coisas não devem continuar como estão. “A
decisão do Conselho da EBC de retirar da grade os
programas religiosos confessionais, específicos de determinadas
religiões, foi corretíssima e de acordo com a Constituição. Sendo uma
emissora pública, os programas não podem ser bancados com o dinheiro
público. Sobre isso, a Constituição é muito clara: o Estado não pode
privilegiar nenhum tipo de culto, só pode abarcar coisas que contemplem
toda a diversidade religiosa presente no povo brasileiro. O problema não
é de quem são os programas, é haver qualquer programa que transmita
cultos. Se fosse da minha religião também seria ilegal.”
O presidente da União Nacional das Entidades Islâmicas, Marcelo
Salamuddin B. dos Santos, acredita que “se não houver a retirada dessa
programação, que pelo menos isso propicie uma maior diversidade no
sentido de se ouvir todos os segmentos religiosos. Achei a audiência
pública extremamente boa, apesar de comentários lamentáveis que
demonstram ainda uma grande intolerância religiosa”.
Já o cônego Marcos Bernardo, da Arquidiocese do Rio de Janeiro, disse
que a audiência pública foi enriquecedora, um momento de manifestação de
maturidade. “Percebemos e temos consciência da pluralidade existente no
Brasil, que deve ser mantida. Para a Igreja Católica, essa diversidade é
enriquecedora. Por isso mesmo o nosso pedido de que haja mais espaço
dentro de uma emissora pública para que as diferentes denominações se
manifestem. Até mesmo para que aqueles que não professam a fé possam se
manifestar. Acredito que fica um saldo muito positivo para a sociedade
e, de modo especial, para a democracia brasileira.”
A presidente do Conselho Curador da EBC, Ana Fleck,
acredita que o caminho agora é fazer uma sistematização dessas
contribuições e encaminhar para o grupo consultivo embasar a proposta.
“Nós temos uma reunião desse grupo consultivo no próximo dia 26 de abril
para trabalhar em cima de propostas concretas. A resolução do conselho
previu 120 dias para a conclusão dos trabalhos. Estamos trabalhando com
esse horizonte. Se houver necessidade, prorrogaremos por mais um mês.
Fiquei positivamente surpresa com o nível das contribuições e com a
maturidade dos participantes. Evidentemente, alguns se sentiram um pouco
incomodados, mas isso faz parte de um tema tão sensível e complexo, era
de se esperar.”
O diretor do programa Reencontro, pastor Flávio Vieira Lima,
da Igreja Batista de Niterói, achou a audiência pública excelente. “Eu
disse para a ex-presidente do conselho, Ima Célia, e para a então
presidente da EBC, Tereza Cruvinel, que o conselho
começou errado. O que estamos fazendo hoje era o que deveria ter
acontecido antes, há quase dois anos, em 2010. Mas tudo começa sempre
por uma boa causa e chegou o momento, então, de colhermos as informações
de todas as diversidades religiosas. E acho que as rádios devem ser
inseridas nesse contexto, para no futuro fazermos a mesma coisa. Acho
que o conselho tem que estudar o problema da TV e das rádios. Gostaria
de alertar que o Congresso Nacional, por meio de várias representações,
está de olho. Se a gente partir para um lado, digamos assim, de guerra
religiosa, o Congresso vai ter que intervir, talvez até artigos da
Constituição tenham que ser mudados para que se entenda a coisa.
Falou-se aqui que existe perseguição religiosa, com pessoas morrendo no
Brasil... Eu gostaria de saber quem são essas pessoas, sejam de qualquer
religião, porque quero defendê-las.”
O conselheiro João Jorge Santos Rodrigues e presidente do grupo Olodum
considerou a audiência um sucesso do ponto de vista de democratizar uma
decisão que o Brasil precisa tomar. “A pluralidade religiosa é
fundamental à modernização da comunicação do país. Ela não pode
continuar sendo objeto de apenas um grupo, de um setor e,
principalmente, com esses instrumentos tão importantes da comunicação
sendo usados contra o candomblé, contra a umbanda, contra outras
religiões. Há amadurecimento e compreensão disso, já saímos daquela fase
do fanatismo que diziam que queriam acabar com os programas religiosos.
Os brasileiros que não estavam até agora na grade da TV Brasil e
da rádio não podem continuar a ficar de fora. A gente propõe é que quem
tinha esse programa seja generoso e construa junto conosco outras
formas de fazer isso. Será um exemplo para outras televisões, para os
meios de comunicação, e dará oportunidade a milhões de brasileiros que
não expressam suas religiões”.
Como vimos pelos depoimentos, a questão é polêmica e a EBC tem um grande desafio pela frente. Se, de um lado, a decisão for pela permanência dos cultos religiosos na programação, a EBC terá a tarefa de incluir outros segmentos religiosos. Neste caso, como ficará a programação da TV e da Rádio Nacional,
já que existem hoje no Brasil mais de 100 religiões, segundo o último
Censo do IBGE? Se, de outro lado, a solução for pela retirada dos cultos
e a inclusão de um programa que discuta a religião do ponto de vista
cultural, como pensar um formato sem que nenhum segmento religioso se
sinta excluído?
Enfim, seja qual for o resultado dessa discussão, só o fato de o
Conselho Curador convocar audiências públicas envolvendo diferentes
setores da sociedade para discutir uma questão tão polêmica já reforça o
compromisso da EBC com a comunicação pública. Se o
sistema público de comunicação quiser de fato reforçar seu caráter
público, tem que pensar uma possibilidade que mostre a religiosidade nas
suas mais diversas visões. Caso contrário, estará cerceando uma
discussão cultural do povo brasileiro, que é essencial.
Boa leitura.
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