Os ritos, liturgias e sacramentos que existem em
qualquer estrutura religiosa e a manifestação da fé sempre passa
pela questão da fala, da língua falada. Nos candomblés de angola, de
origem bantu, especialmente de povos oriundos de Angola e Congo e
que começa a formar suas raízes em terras brasileiras a partir da
chegada do primeiro escravizado embarcado nos portos de Cambinda
(próximo a foz do rio Congo) e Luanda, ambos na atual Angola (embora
se saiba que a sede de embarque não definia necessariamente a etnia
do escravizado), não seria diferente. Da região centro sul africana
veio uma variedade étnica dentro do grande grupo classificado como
bantu, com suas diferentes línguas e dialetos, e consequentemente
com suas estruturas de crenças e manifestações de fé. Entre esta
diversidade não pode ser esquecida a influencia também da língua e
religião levada pelos portugueses que chegaram aquelas paragens
(primeiro no reino do Congo) com Diogo Cão entre 1482 a1486, que oficialmente buscava a evangelização e
consequentemente a exploração de riquezas e comércio. Mesmo com o
bom relacionamento estabelecido com o rei do congo, ou Senhor da
Região do Zaire, como seria mais tarde chamado, o comércio e a
exploração se tornaram pouco lucrativos o que redirecionou os
interesses para a exploração do tráfico de escravizados, levando os
portugueses mais para o Sul, chegando ao reino de Ngola.
Toda esta penetração portuguesa era seguida pela
língua, imposta muitas vezes por força e pelo cristianismo, imposto
também, com a mesma violência.
São os ali escravizados que vão alimentar o
crescente comércio escravocrata de africanos até, oficialmente,
1842, embora fosse uma realidade até 1869, com desembarque em sua
grande maioria no Brasil.
O Candomblé como religião (re)criada no Brasil, já
nasce da diversidade de vários povos africanos, com estruturas
religiosas semelhantes ou diferentes, mas que tinham a base de culto
comum:
- a uma divindade suprema, que atuaria somente
como consciência, por isso, estaria longe dos dilemas existenciais,
sendo assim não teria um culto específico, já que estaria acima de
qualquer bem e qualquer mal e muito além de ser ofendida ou agradada
pelo humano;
- manifestações daquela divindade em formas
intermediárias, ligadas tanto à natureza como aos arquétipos
humanos, e que podem ser ao mesmo tempo tão divinas quando a
divindade suprema, e tão humanas quanto os humanos que lhe cultuam.
Assim respeitavam as forças naturais do planeta, incluindo ai outras
formas de vida animal e vegetal e mineral, e a elas atribuíam
caráter divino;
- culto aos antepassados e ancestrais divinizados
(que aqui não seria a própria divindade primordial, mas o ancestral
mais antigo daquela linhagem que revelou a natureza de uma
divindade);
Com esta base comum, e já com influencia dos
colonizadores, especificamente no caso das tradições chamadas de
origem bantu, pois muitos africanos escravizados já vinham falando
português e cristianizado (aqui, sem a discussão da apropriação ou
não da fé dos colonizadores para uma releitura de sua própria fé, ou
se cristianizado pela força somente), e com a contribuição coletiva
de outros africanos de origens étnicas e geográficas diversas, com
outras línguas e cultos, nasce entre as tradições que viriam a ser
chamada de Candomblé genericamente, o candomblé de angola, nação
angola, angola-congo, ou muxicongo, mas tradicionalmente conhecido
como Candomblé de Angola, que também se subdivide em famílias
religiosas, a partir de um ancestral brasileiro/brasileira ou
africano/africana, mas já vivente em terras brasileiras, com suas
diversidades e características próprias.
As diversidades dentro do próprio Candomblé de
Angola se dão pela influencia maior ou menor de um determinado povo
bantu, a influencia da língua portuguesa na sua formação, e a
proximidade e vivencia com outros cultos originários de povos
nativos do Brasil, ou de origem africana, como as tradições
religiosas oriundas da yorubalandia, ou dos povos do antigo
Dahomé atualmente Nigéria, Benin e Niger.
É fato que muitas famílias de Candomblé de Angola
(que é o nosso foco, embora esta realidade possa ter acontecido com
outras tradições) na sua origem, cantavam e rezavam e realizavam
muitos dos seus ritos e liturgias em língua portuguesa, ou mesclada
com línguas africanas, neste caso, de predominância de origem bantu,
criando-se quase uma língua própria ou um dialeto crioulo
dentro dos espaços rituais.
A partir do final do século XVIII a meados do
século XIX, com a fixação de casas de cultos africanos, que viriam a
ser chamados de candomblé, já fora dos espaços sincréticos cristãos
(antes muitos cultos se realizavam anexos às próprias igrejas
católicas, e os apetrechos sagrados era guardados em locais diversos
destas reuniões), e formação de casas especificamente para os
cultos, é que começam a aparecer as diferenças étnicas de cada
tradição, e é ai que se inicia a história das “Nações de Candomblé”
sempre ligadas a predominância étnica e geográfica de um
grupo.
Assim também nasceu o candomblé de angola, ainda
mesclado culturalmente, mitologicamente, religiosamente e, claro,
lingüisticamente. Como as interações nunca acabam, agregaram valores
de outros povos, e contribuíram com seus valores e lembranças do
continente distante, para outras tradições religiosas de outros
povos que se formavam também aqui no Brasil.
Não se pode perder de vista que o Candomblé, como
religião institucionalizada, é o resultado de uma construção
coletiva histórica, e de vários povos.
Mas mesmo sendo uma construção histórica coletiva,
quando da separação das “Nações de Candomblé”, já se vislumbrava as
diferenças étnicas e de origens geográficas que predominavam em cada
tradição, por isso buscou-se estas dominações. Consequentemente
gerou espaço para agregar aqueles, que sendo africanos,
descendentes, ou brasileiros, que mais se afinizavam com esta ou
aquela tradição, com estas ou aquelas divindades e com esta(s) ou
aquela(s) língua(s) ou dialeto.
Como a influencia portuguesa já vinha, muitas
vezes, desde a África, os grupos que mantinham a gênesis que
formaria o Candomblé de Angola nasceram, ou se mesclaram
facilmente, gerando ou se influenciando mutuamente, o chamado
candomblé de caboclo, que era praticado por mestiços de africanos,
portugueses e de forte influencia do cristianismo e dos povos,
línguas e crenças nativas do Brasil.
Estes grupos de origem bantu, podem está na
gênesis ou até ter se utilizado das bases do chamado candomblé de
caboclo, seja pela afinidade na estrutura de crença, ou pelo peso da
perseguição sofrida pelas tradições africanas, ou até, quem sabe,
pela fragilidade de algumas de suas lembranças ancestrais. E assim,
nos primórdios, as casas de candomblé de Angola, tinham influencias
muito fortes da língua portuguesa, e até mesmo das línguas nativas
do Brasil, sem esquecer as bases das línguas faladas pelos seus
antepassados. Isto tudo a partir dos meados do século XVIII e
início do século XX, embora se tenha registro de cultos de origem
bantu já bem anteriores, mas não eram institucionalizados nem
organizados como uma religião.
Mas claro, com a criação de espaços que destacavam
uma identidade étnica diferenciada, como o candomblé de angola (com
origem nos povos bantu); candomblé de ketu (com origem nos povos
yorubanos); e candomblé djeje (com origem nos povos dahomeanos), se
exacerbou a questão das identidades africanas e da busca de cada uma
delas, tentando se aproximar das suas origens étnicas, do resgate da
lembrança de seus ancestrais e do culto de suas divindades, incluído
ai as questões lingüísticas.
Nenhuma identidade se firma (nem se afirma) sem
que a língua esteja no centro das discussões ou
preocupações.
Falar ou rezar na língua dos meus ancestrais, ou
dos ancestrais da religião que abraço, me faz sentir com um galho
ligado diretamente ao tronco fixado em uma raiz forte e profunda no
seio da terra. É a identidade do que eu era, do que eu sou, e do que
serei.
Então, a partir dos anos 70, com a aproximação de
vários artistas, autoridades e acadêmicos do Candomblé,
especialmente dos candomblés de ketu, houve uma grande divulgação da
cultura, língua, cultos, liturgias e ritos yorubanos, e a palavra
Candomblé, como religião instituída, passou quase a ser sinônimo,
principalmente entre leigos e no senso comum, do próprio continente
africano, como se toda a África falasse yorubá e cultuasse somente
Orixá[1], e do candomblé de ketu, como se todas as casas de
candomblé também falassem, rezassem somente em yorubá e cultuassem
somente Orixá, ficando quase esquecida a diversidade africana
presente nas diversas tradições do candomblé.
Muitas vezes este esquecimento era patrocinado até
pela própria academia e acadêmicos com suas pesquisas rasas e
direcionadas ao fascínio do exótico que as tradições africanas
exercem, sem considerar o seu real valor como identidades, crenças,
legitimidades de fé, cosmogonias e diversidade de manifestação
cultural e religiosa.
Por outro lado, esta divulgação da cultura, seja
lingüística, secular ou religiosa yorubana, revelou o dilema de
outras tradições, e serviu como um chamamento á busca ou afirmação
de suas identidades.
O candomblé de angola, por sua vez, e dentro da
sua própria diversidade e tradições e famílias de culto, passou por
um período (re)africanização ou (re)avivamento africano, com a
afirmação do nome de suas divindades, conhecidas genericamente como
Nkisi/Mukisi/Kalundu, na afirmação das suas diversidades
lingüísticas, onde se sobressaem o Kimbundu[2], o
Kikongo[3], e o Umbundu[4], e vários outros dialetos,
alguns nem catalogados, que aprecem em suas rezas, cantigas e
expressões culturais desta tradição específica de
candomblé.
Assim, as casas tradicionais de candomblé de
angola, sem nenhuma necessidade de se denominar tradicionalista
africana, mas simplesmente de praticante de religião de matriz
africana, e agradecidas pela memória e generosidade dos mais velhos,
e pela busca eficiente dos mais novos, protagoniza a afirmação de
sua(s) identidade (s), mostrando que consegue fazer o seu culto sem,
ou pelo menos com a presença mínima de palavras de língua
portuguesa, ou de outros povos africanos. Quando estas palavras
“estrangeiras” aparecem, juntamente com os seus ritos originários de
outros povos, são usadas e realizados conscientemente, como uma
herança também digna de ser conservada, já que também foi herdada
legitimamente de seus antepassados.
O objetivo não é se auto afirmar como povo
tradicionalista africano ou nativo africano, mas como uma comunidade
tradicional que sabe de onde vieram suas crenças, valores, línguas e
ritos, que devem ser preservados, não por que é mais autêntico do
que as tradições de outros povos, mas por que é uma parte da
história de toda a humanidade e de sua própria história como
identidade religiosa. É uma questão de consciência e conhecimento
das origens. Não é nenhum sacrilégio praticar um rito ou falar uma
língua originária de outro povo (ou outros povos), desde que se faça
com consciência das suas origens e do recebimento legítimo desta
herança. O que se recebe legitimamente, não deve ser deixado para
trás.
Por isso, aqui, não se encontra nenhuma crítica a
quem mantém os seus ritos com cantigas e rezas em português, yorubá,
ou qualquer outra língua, mesmo afirmando sua identidade como
Angoleiro[5]. Não podendo esquecer, porém, que adotar todas
as tradições de outros povos em detrimento das próprias é patrocinar
o próprio desaparecimento, com perda de identidade, da história dos
seus antepassados e do próprio presente, já que não vai saber em
qual tronco está ligado, e não conseguirá se conectar às raízes que
calam no fundo da terra mãe.
O que se buscou neste pequeno artigo foi
explicitar que as coisas não acontecem do acaso e não nascem prontas
e acabadas. Principalmente nas organizações e construções sociais
humanas.
Tudo tem uma história, e é esta história que
endossa a cada um/uma fazer de acordo com sua família de culto ou
tradição. Não é o fato de usar somente línguas e dialetos de origem
bantu, que faz uma pessoa mais autêntica em sua fé ou identidade
angoleiras, se muitas vezes o que herdou, inclusive diretamente de
um antepassado de origem bantu, já foi aportuguesado, que se uniu a
um antepassado yorubano ou dahomeano, ou nativo do Brasil. O que
importa é a manutenção da identidade e de como cada um se
(auto)reconhece no seu universo social religioso.
Com tudo que foi dito, não tem como separar
as identidades das diferentes tradições do Candomblé, das línguas
rituais e litúrgicas, e isto deve ser entendido na construção
histórica desta religião, a partir das origens geográficas e étnicas
de cada povo, e da sua interação com o meio no novo mundo para onde
foi raptado, e, mesmo escravizado, conseguiu manter suas lembranças,
fé, cantos, rezas, danças, ritmos em sintonia com os seus
antepassados que remontam a um tempo fora do tempo, pois chega mesmo
aos tempos míticos, sem deixar de abraçar os novos conhecimentos e
possibilidades que os novos desafios lhes trouxeram e
trazem.
E hoje, livre, o Candomblé outrora tão perseguido,
pode sim refazer sua história e raiz ancestral, se não pelas vias
genéticas, já que seus antepassados foram vilipendiados e não
deixaram uma história sequencial de suas famílias, mas pela via
lingüística preservada nos ritos, nas rezas, nos cantos, nos mitos,
nas lendas, nas histórias contadas e recontadas por séculos, e pela
(re)criação de toda uma realidade espiritual a cada roda de
candomblé.
Bibliografia
Castilho, Lisa Earl e Parés, Luis
Nicolau, Marcelina da Silva e seu mundo: novos dados para uma
historiografia do candomblé ketu Edição: 36 (2007);
Rui Ramos (1998). Kimbundu/quimbundo
(em português). Ciberdúvidas da Língua Portuguesa. Página
visitada em 26-09-2011;
Lewis, M. Paul. Ethnologue:
Languages of the World (em Inglês).
Sexta ed. [S.l.]: Dallas, Tex.: SIL
International, 2009. ISBN
978-1-55671-216-6;
Previtalli, Ivete Miranda. Candomblé –
Agora é Angola, Editora Annablume, São Paulo, 2008; e
Silveira,
Renato da. Candomblé da Barroquinha. Editora Maianga,
2007. ISBN
8588543419
Exploração e Colonização de Angola.
In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2011.
[Consult. 2011-08-26]. Disponível na www: http://www.infopedia.pt/$ exploracao-e-colonizacao-de- angola
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[1] Divindades do panteão
yorubano.
[2] O kimbundu ou quimbundo
- faz parte da grande família de línguas africanas a que a
partir do século passado os europeus convencionaram chamar Bantu
(bantu significa «pessoas», e é plural de muntu). É uma das línguas
nacionais angolanas e é falada no noroeste, incluindo Luanda,
Catete, Malanje e as áreas de fronteira no Norte (Dembo - variante
crioula kimbundu/kikongo) e no Centro (Kuanza Sul - variante crioula
kimbundu/umbundu). O português tem muitos empréstimos lexicais desta
língua obtidos durante a colonização do território e através dos
escravizados levados para o Brasil.
[3] kikongo ou
quicongo - faz parte da grande família de línguas
africanas, chamadas bantu. Também conhecido como cabinda,
congo, kongo ou kikoongo. É uma falada pelos bacongos nas
províncias deCabinda, do Uíge
e do Zaire,
no norte de Angola; no Baixo-Congo,
na República
Democrática do Congo; e nas regiões limítrofes da República
do Congo. O kikongo é uma das línguas língua nacional de Angola,
tem diversos dialectos e era a língua falada no antigo Reino do
Congo
[4] umbundu ou umbundo -
também grafado como m'bundo, mbundu do sul,
nano, mbali, mbari oumbundu de Benguela)
é uma língua banta falada pelos ovimbundos das
montanhas centrais (centro sul) de Angola. É das línguas
nacionais de Angola.É também falada na Namíbia.
[5] Praticante do Candomblé de
Angola.
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