13 de outubro de 2011

FOAFRO As identidades lingüísticas no Candomblé de Angola.




Os ritos, liturgias e sacramentos que existem em qualquer estrutura religiosa e a manifestação da fé sempre passa pela questão da fala, da língua falada. Nos candomblés de angola, de origem bantu, especialmente de povos oriundos de Angola e Congo e que começa a formar suas raízes em terras brasileiras a partir da chegada do primeiro escravizado embarcado nos portos de Cambinda (próximo a foz do rio Congo) e Luanda, ambos na atual Angola (embora se saiba que a sede de embarque não definia necessariamente a etnia do escravizado), não seria diferente. Da região centro sul africana veio uma variedade étnica dentro do grande grupo classificado como bantu, com suas diferentes línguas e dialetos, e consequentemente com suas estruturas de crenças e manifestações de fé. Entre esta diversidade não pode ser esquecida a influencia também da língua e religião levada pelos portugueses que chegaram aquelas paragens (primeiro no reino do Congo) com Diogo Cão entre 1482 a1486, que oficialmente buscava a evangelização e consequentemente a exploração de riquezas e comércio. Mesmo com o bom relacionamento estabelecido com o rei do congo, ou Senhor da Região do Zaire, como seria mais tarde chamado, o comércio e a exploração se tornaram pouco lucrativos o que redirecionou os interesses para a exploração do tráfico de escravizados, levando os portugueses mais para o Sul, chegando ao reino de Ngola.

Toda esta penetração portuguesa era seguida pela língua, imposta muitas vezes por força e pelo cristianismo, imposto também, com a mesma violência.

São os ali escravizados que vão alimentar o crescente comércio escravocrata de africanos até, oficialmente, 1842, embora fosse uma realidade até 1869, com desembarque em sua grande maioria no Brasil.

O Candomblé como religião (re)criada no Brasil, já nasce da diversidade de vários povos africanos, com estruturas religiosas semelhantes ou diferentes, mas que tinham a base de culto comum:
- a uma divindade suprema, que atuaria somente como consciência, por isso, estaria longe dos dilemas existenciais, sendo assim não teria um culto específico, já que estaria acima de qualquer bem e qualquer mal e muito além de ser ofendida ou agradada pelo humano;
- manifestações daquela divindade em formas intermediárias, ligadas tanto à natureza como aos arquétipos humanos, e que podem ser ao mesmo tempo tão divinas quando a divindade suprema, e tão humanas quanto os humanos que lhe cultuam. Assim respeitavam as forças naturais do planeta, incluindo ai outras formas de vida animal e vegetal e mineral, e a elas atribuíam caráter divino;
- culto aos antepassados e ancestrais divinizados (que aqui não seria a própria divindade primordial, mas o ancestral mais antigo daquela linhagem que revelou a natureza de uma divindade);

Com esta base comum, e já com influencia dos colonizadores, especificamente no caso das tradições chamadas de origem bantu, pois muitos africanos escravizados já vinham falando português e cristianizado (aqui, sem a discussão da apropriação ou não da fé dos colonizadores para uma releitura de sua própria fé, ou se cristianizado pela força somente), e com a contribuição coletiva de outros africanos de origens étnicas e geográficas diversas, com outras línguas e cultos, nasce entre as tradições que viriam a ser chamada de Candomblé genericamente, o candomblé de angola, nação angola, angola-congo, ou muxicongo, mas tradicionalmente conhecido como Candomblé de Angola, que também se subdivide em famílias religiosas, a partir de um ancestral brasileiro/brasileira ou africano/africana, mas já vivente em terras brasileiras, com suas diversidades e características próprias.

As diversidades dentro do próprio Candomblé de Angola se dão pela influencia maior ou menor de um determinado povo bantu, a influencia da língua portuguesa na sua formação, e a proximidade e vivencia com outros cultos originários de povos nativos do Brasil, ou de origem africana, como as tradições religiosas oriundas da yorubalandia, ou dos povos do antigo Dahomé atualmente Nigéria, Benin e Niger.

É fato que muitas famílias de Candomblé de Angola (que é o nosso foco, embora esta realidade possa ter acontecido com outras tradições) na sua origem, cantavam e rezavam e realizavam muitos dos seus ritos e liturgias em língua portuguesa, ou mesclada com línguas africanas, neste caso, de predominância de origem bantu, criando-se quase uma língua própria ou um dialeto crioulo dentro dos espaços rituais.

A partir do final do século XVIII a meados do século XIX, com a fixação de casas de cultos africanos, que viriam a ser chamados de candomblé, já fora dos espaços sincréticos cristãos (antes muitos cultos se realizavam anexos às próprias igrejas católicas, e os apetrechos sagrados era guardados em locais diversos destas reuniões), e formação de casas especificamente para os cultos, é que começam a aparecer as diferenças étnicas de cada tradição, e é ai que se inicia a história das “Nações de Candomblé” sempre ligadas a predominância étnica e geográfica de um grupo.

Assim também nasceu o candomblé de angola, ainda mesclado culturalmente, mitologicamente, religiosamente e, claro, lingüisticamente. Como as interações nunca acabam, agregaram valores de outros povos, e contribuíram com seus valores e lembranças do continente distante, para outras tradições religiosas de outros povos que se formavam também aqui no Brasil.

Não se pode perder de vista que o Candomblé, como religião institucionalizada, é o resultado de uma construção coletiva histórica, e de vários povos.

Mas mesmo sendo uma construção histórica coletiva, quando da separação das “Nações de Candomblé”, já se vislumbrava as diferenças étnicas e de origens geográficas que predominavam em cada tradição, por isso buscou-se estas dominações. Consequentemente gerou espaço para agregar aqueles, que sendo africanos, descendentes, ou brasileiros, que mais se afinizavam com esta ou aquela tradição, com estas ou aquelas divindades e com esta(s) ou aquela(s) língua(s) ou dialeto.

Como a influencia portuguesa já vinha, muitas vezes, desde a África, os grupos que mantinham a gênesis que formaria o Candomblé de Angola nasceram, ou se mesclaram  facilmente, gerando ou se influenciando mutuamente, o chamado candomblé de caboclo, que era praticado por mestiços de africanos, portugueses e de forte influencia do cristianismo e dos povos, línguas e crenças nativas do Brasil.

Estes grupos de origem bantu, podem está na gênesis ou até ter se utilizado das bases do chamado candomblé de caboclo, seja pela afinidade na estrutura de crença, ou pelo peso da perseguição sofrida pelas tradições africanas, ou até, quem sabe, pela fragilidade de algumas de suas lembranças ancestrais. E assim, nos primórdios, as casas de candomblé de Angola, tinham influencias muito fortes da língua portuguesa, e até mesmo das línguas nativas do Brasil, sem esquecer as bases das línguas faladas pelos seus antepassados.  Isto tudo a partir dos meados do século XVIII e início do século XX, embora se tenha registro de cultos de origem bantu já bem anteriores, mas não eram institucionalizados nem organizados como uma religião.

Mas claro, com a criação de espaços que destacavam uma identidade étnica diferenciada, como o candomblé de angola (com origem nos povos bantu); candomblé de ketu (com origem nos povos yorubanos); e candomblé djeje (com origem nos povos dahomeanos), se exacerbou a questão das identidades africanas e da busca de cada uma delas, tentando se aproximar das suas origens étnicas, do resgate da lembrança de seus ancestrais e do culto de suas divindades, incluído ai as questões lingüísticas.

Nenhuma identidade se firma (nem se afirma) sem que a língua esteja no centro das discussões ou preocupações.

Falar ou rezar na língua dos meus ancestrais, ou dos ancestrais da religião que abraço, me faz sentir com um galho ligado diretamente ao tronco fixado em uma raiz forte e profunda no seio da terra. É a identidade do que eu era, do que eu sou, e do que serei.

Então, a partir dos anos 70, com a aproximação de vários artistas, autoridades e acadêmicos do Candomblé, especialmente dos candomblés de ketu, houve uma grande divulgação da cultura, língua, cultos, liturgias e ritos yorubanos, e a palavra Candomblé, como religião instituída, passou quase a ser sinônimo, principalmente entre leigos e no senso comum, do próprio continente africano, como se toda a África falasse yorubá e cultuasse somente Orixá[1], e do candomblé de ketu, como se todas as casas de candomblé também falassem, rezassem somente em yorubá e cultuassem somente Orixá, ficando quase esquecida a diversidade africana presente nas diversas tradições do candomblé.

Muitas vezes este esquecimento era patrocinado até pela própria academia e acadêmicos com suas pesquisas rasas e direcionadas ao fascínio do exótico que as tradições africanas exercem, sem considerar o seu real valor como identidades, crenças, legitimidades de fé, cosmogonias e diversidade de manifestação cultural e religiosa.

Por outro lado, esta divulgação da cultura, seja lingüística, secular ou religiosa yorubana, revelou o dilema de outras tradições, e serviu como um chamamento á busca ou afirmação de suas identidades.

O candomblé de angola, por sua vez, e dentro da sua própria diversidade e tradições e famílias de culto, passou por um período (re)africanização ou (re)avivamento africano, com a afirmação do nome de suas divindades, conhecidas genericamente como Nkisi/Mukisi/Kalundu, na afirmação das suas diversidades lingüísticas, onde se sobressaem o Kimbundu[2], o Kikongo[3], e o Umbundu[4], e vários outros dialetos, alguns nem catalogados, que aprecem em suas rezas, cantigas e expressões culturais desta tradição específica de candomblé.

Assim, as casas tradicionais de candomblé de angola, sem nenhuma necessidade de se denominar tradicionalista africana, mas simplesmente de praticante de religião de matriz africana, e agradecidas pela memória e generosidade dos mais velhos, e pela busca eficiente dos mais novos, protagoniza a afirmação de sua(s) identidade (s), mostrando que consegue fazer o seu culto sem, ou pelo menos com a presença mínima de palavras de língua portuguesa, ou de outros povos africanos. Quando estas palavras “estrangeiras” aparecem, juntamente com os seus ritos originários de outros povos, são usadas e realizados conscientemente, como uma herança também digna de ser conservada, já que também foi herdada legitimamente de seus antepassados.

O objetivo não é se auto afirmar como povo tradicionalista africano ou nativo africano, mas como uma comunidade tradicional que sabe de onde vieram suas crenças, valores, línguas e ritos, que devem ser preservados, não por que é mais autêntico do que as tradições de outros povos, mas por que é uma parte da história de toda a humanidade e de sua própria história como identidade religiosa. É uma questão de consciência e conhecimento das origens. Não é nenhum sacrilégio praticar um rito ou falar uma língua originária de outro povo (ou outros povos), desde que se faça com consciência das suas origens e do recebimento legítimo desta herança. O que se recebe legitimamente, não deve ser deixado para trás.

Por isso, aqui, não se encontra nenhuma crítica a quem mantém os seus ritos com cantigas e rezas em português, yorubá, ou qualquer outra língua, mesmo afirmando sua identidade como Angoleiro[5]. Não podendo esquecer, porém, que adotar todas as tradições de outros povos em detrimento das próprias é patrocinar o próprio desaparecimento, com perda de identidade, da história dos seus antepassados e do próprio presente, já que não vai saber em qual tronco está ligado, e não conseguirá se conectar às raízes que calam no fundo da terra mãe.

O que se buscou neste pequeno artigo foi explicitar que as coisas não acontecem do acaso e não nascem prontas e acabadas. Principalmente nas organizações e construções sociais humanas.

Tudo tem uma história, e é esta história que endossa a cada um/uma fazer de acordo com sua família de culto ou tradição. Não é o fato de usar somente línguas e dialetos de origem bantu, que faz uma pessoa mais autêntica em sua fé ou identidade angoleiras, se muitas vezes o que herdou, inclusive diretamente de um antepassado de origem bantu, já foi aportuguesado, que se uniu a um antepassado yorubano ou dahomeano, ou nativo do Brasil. O que importa é a manutenção da identidade e de como cada um se (auto)reconhece no seu universo social religioso.

Com tudo que foi dito, não tem como separar as identidades das diferentes tradições do Candomblé, das línguas rituais e litúrgicas, e isto deve ser entendido na construção histórica desta religião, a partir das origens geográficas e étnicas de cada povo, e da sua interação com o meio no novo mundo para onde foi raptado, e, mesmo escravizado, conseguiu manter suas lembranças, fé, cantos, rezas, danças, ritmos em sintonia com os seus antepassados que remontam a um tempo fora do tempo, pois chega mesmo aos tempos míticos, sem deixar de abraçar os novos conhecimentos e possibilidades que os novos desafios lhes trouxeram e trazem.

E hoje, livre, o Candomblé outrora tão perseguido, pode sim refazer sua história e raiz ancestral, se não pelas vias genéticas, já que seus antepassados foram vilipendiados e não deixaram uma história sequencial de suas famílias, mas pela via lingüística preservada nos ritos, nas rezas, nos cantos, nos mitos, nas lendas, nas histórias contadas e recontadas por séculos, e pela (re)criação de toda uma realidade espiritual a cada roda de candomblé.

Bibliografia
Castilho, Lisa Earl e Parés, Luis Nicolau, Marcelina da Silva e seu mundo: novos dados para uma historiografia do candomblé ketu Edição: 36 (2007);
Rui Ramos (1998). Kimbundu/quimbundo (em português). Ciberdúvidas da Língua Portuguesa. Página visitada em 26-09-2011;
Lewis, M. Paul. Ethnologue: Languages of the World (em Inglês). Sexta ed. [S.l.]: Dallas, Tex.: SIL International, 2009. ISBN 978-1-55671-216-6;
Previtalli, Ivete Miranda. Candomblé – Agora é Angola, Editora Annablume, São Paulo, 2008; e
 Silveira, Renato da. Candomblé da Barroquinha. Editora Maianga, 2007. ISBN 8588543419

 Exploração e Colonização de Angola. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2011. [Consult. 2011-08-26]. Disponível na www: http://www.infopedia.pt/$exploracao-e-colonizacao-de-angola


Tata Ngunz’tala
Nzo Jimona de Nzambi – Ndanji Tumba Junçara.


[1] Divindades do panteão yorubano.
[2] O kimbundu ou quimbundo -  faz parte da grande família de línguas africanas a que a partir do século passado os europeus convencionaram chamar Bantu (bantu significa «pessoas», e é plural de muntu). É uma das línguas nacionais angolanas e é falada no noroeste, incluindo Luanda, Catete, Malanje e as áreas de fronteira no Norte (Dembo - variante crioula kimbundu/kikongo) e no Centro (Kuanza Sul - variante crioula kimbundu/umbundu). O português tem muitos empréstimos lexicais desta língua obtidos durante a colonização do território e através dos escravizados levados para o Brasil.
[3] kikongo ou quicongo  - faz parte da grande família de línguas africanas, chamadas bantu. Também conhecido como cabinda, congo, kongo ou kikoongo. É uma falada pelos bacongos nas províncias deCabinda, do Uíge e do Zaire, no norte de Angola; no Baixo-Congo, na República Democrática do Congo; e nas regiões limítrofes da República do Congo. O kikongo é uma das línguas língua nacional de Angola, tem diversos dialectos e era a língua falada no antigo Reino do Congo
[4] umbundu ou umbundo - também grafado como m'bundo, mbundu do sul, nano, mbali, mbari oumbundu de Benguela) é uma língua banta falada pelos ovimbundos das montanhas centrais (centro sul) de Angola. É das línguas nacionais de Angola.É também falada na Namíbia.
[5] Praticante do Candomblé de Angola.
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