4 de março de 2011

Entrevista Tom Zé: “Não faço música, faço rebeldia”



Participaram Cecília Luedemann, Débora Prado, Hamilton Octavio de Souza, Lúcia Rodrigues, Lucia Tavares, Otávio Nagoya, Paula Salati, Tatiana Merlino.
Mais uma vez a revista Caros Amigos faz entrevista com o músico, compositor, arranjador e cantor Tom Zé, considerado um dos mais criativos e originais da música popular brasileira. Nascido em Irará, interior da Bahia, integrante do movimento Tropicália, radicado em São Paulo há muitos anos, Tom Zé mantém uma fértil e excelente produção musical, está em plena forma artística aos 74 anos de idade e arrasta um grande público – especialmente entre os jovens. Nesta entrevista, divertida, irreverente e instigante, ele impressiona pela sagacidade e profundidade de suas análises. Fiquem com a arte, a cultura e a rebeldia de Tom Zé.

Cecília Luedemann – Você poderia começar falando do seu trabalho atual.
Tom Zé – Eu queria pedir uma coisa a vocês. Como a minha práxis não é o discurso... Eu e a Neusa somos assinantes da Caros Amigos e lemos apaixonadamente tudo. Aí, eu falei com Neusa: “Nossa, se eu pudesse dar uma entrevista, não como se eu fosse um professor, como eu fosse o maluco que eu sou, mas que tivesse a capacidade de uma pessoa cuja a práxis é o discurso.” Isso não é o meu métier. Então, eu vou pedir a vocês que entremos num barato de seguir um certo leitmotiv e, nessa coisa, todas as inteligências aqui somam para tornar isso fácil para o leitor. Porque eu me preparei. Foi a única vez na minha vida que eu me preparei para uma entrevista. Ontem, eu estava trabalhando, parei para dizer: “Eu preciso ter uma coisa pelo menos organizada. E, aí, a gente poder entregar, honestamente, a essas pessoas que leem - vocês, como nós -, uma coisa razoável.”

Cecília Luedemann – Como é a experiência de criação da sua música de raiz brasileira com o diálogo universal?
Olha, você acabou de falar uma coisa que é o que eu aprendi com Neusa [esposa e empresária de Tom Zé] e com David Byrne, um compositor e multiartista, que tem certa sensibilidade internacional: “Para a sua música poder tocar no exterior, você precisa fazer música brasileira, mesmo.” Eles não compram o que eles já tocam bem. Eles não compram imitações. Tem um episódio que explica isso de uma maneira bem fácil. Nós estávamos em Londres para fazer o Barbican e o rapaz da Trama, o Kid Vinil, disse assim: “Puxa, vida, vocês sabem o que eles fizeram? Pagaram o dinheiro todo e mandaram embora.” Eles ouviam falar em DJs brasileiros. É claro que eles pensaram assim: “Puxa, DJs do Brasil. Aquele país onde a música é tão rica quanto dos Estados Unidos.” Porque hoje eles dizem isso na Inglaterra: “Olha, deve ser uma coisa curiosa.” Então, eles pegaram os DJs e contrataram para fazer quatro shows ali naquelas cidades, perto de Roma. Justamente o Kid Vinil chegou para gente e disse: “Eles viram o primeiro show, pagaram os quatro shows e mandaram embora.” Por que? Por que os DJs estavam tocando uma versão mais diluída do que eles mesmos fazem. Isso é uma coisa incrível. Eles esperavam que os DJs fossem brasileiros e os DJs imitavam o americano e o inglês. Para mim, não foi dito diretamente. Mas a Neusa sempre dizia: “Isso quer dizer que você para poder tocar lá tem que ser brasi- leiro.” Esse é um dos segredos.
Agora, isso puxa um assunto que a Neusa e eu calculamos como ia ser esta entrevista. {Risos} Tudoé possível de alguma forma. A gente calculou que vocês iam começar perguntando sobre o começo.

Neusa Santos – É por causa das entrevistas que vocês fazem.

Hamilton Octavio de Souza – As entrevistas da Caros Amigos são assim...
Mas, no meu caso, o começo é o fim. Eu tô eternamente no começo. Então, eu queria propor uma ideia, se vocês toparem. É uma ideia que eu ponho na mesa. Se vocês aceitarem, apontem as antenas para essa ideia, porque vai ser uma coisa boa. Como se fosse um time de futebol.

Hamilton Octavio de Souza – Qual é a proposta?
A proposta é a seguinte. Como o meu começo é o meu fim, quando eu estou aqui no começo, eu estou aqui no fim. Toda hora que meu fim é posto em cheque, eu vou no começo saber o que tem de errado. Porque eu sou “vítima”... E é um episódio que, se eu conseguir tratar, vai mostrar como a música brasileira foi trabalhadora em desenvolvimento da virulência do país. Rapaz, só para dar uma pitada do que vai acontecer. Eu tava lá. Eu tava na Idade Média. Eu nasci em 1936, num lugar que era Idade Média, do ponto de vista de procedimento e tempo. As relações metafísicas, as relações religiosas, as relações de amor, as relações de trabalho, as relações de família, as relações de brincar, as relações de estudar. Tava tudo, metafisicamente, moçarebe, que é o tipo de infância dos nossos avós.
Alain Resnais, um cineasta francês, diz que de 0 a 2 anos de idade é a fase em que a criatura humana, nós, carne e osso, cabeça, destino e tudo, mais aprendemos. Nunca se aprende com tanta intensidade nem com tantos dados que de 0 a 2 anos de idade. A gente é mais rápido que um computador de 0 a 2 anos de idade. O cineasta francês Alain Resnais fez um filme para provar isso, porque de 0 a 2 anos de idade a placa mental está completamente virgem. Qualquer coisa que bata ali faz um sinal, grava, e aí você pega um combustível que dificilmente vai ser deteriorado para o resto da vida. Rapazes e meninas, e eu com 0 a 2 anos de idade tive uma sorte. Eu, Caetano, Gil, Torquato Neto, Glauber Rocha. Olha o lugar que a gente nasceu.

Cecília Luedemann – A creche tropicalista.
Pode ser creche de tudo, mas como a presença da gente no mundo foi chamada de “tropicalista”... Pode ser creche de tudo. Veja bem, agora eu explico isso. Berçário dos “analfatóteles”. Nós fomos criados de 0 a 2 anos de idade sem Aristóteles. Meus senhores, vocês não podem pensar o que é uma educação sem Aristóteles. É outra concepção de mundo. Aristóteles é uma maravilha, fez tudo o que a gente pratica até hoje, mas a gente foi educado num universo sem Aristóteles. Olha, é difícil você partilhar. Se a gente for ver, Aristóteles está aqui, assim ó, em cima da gente, está em cima, está por dentro e está por fora, para tirar não dá mais. Esses donos dessa outra concepção do mundo, em nosso caso foram os árabes. Olha, como nós temos cara de árabe e judeu, cristão novo.
Com 0 anos de idade. Eu, filho de seu Everton e de Dona Helena, em 1936, tinha um amigo chamado Antonio José, cujo apelido era Toinzé. Como não se botava apelido como agora se bota nos filhos das pessoas, eles botaram Antonio José para chamar de Toinzé. Então, nasço eu lá. No meu tempo, a criança ficava no berço de 0 a 2 anos de idade. Quanto menos chorasse, melhor. Entretanto, a gente tinha uma roda de professores que circulavam entre nós, jogando no nosso ouvido atento todas essas coisas que estão aqui, essa banca de preceptores babás. Quem eram os professores? Os camaradas do nordeste. Quem me ensinou isto foi [Câmara] Cascudo. A gente nunca sabe as coisas direito. Cascudo, o escritor riograndensedo-norte, me ensinou sobre os cantadores. O que a gente ouvia dos cantadores de 0 a 2 anos de idade? A gente ouvia sobre Ética, era assunto de todo dia na nossa vida, porque a gente era 3 mil almas há cento e tantos anos. Irará, população 3 mil habitantes, ano 1840, 1900... sempre 3 mil almas. Quando morria um, chegava outro no lugar. A cidade nunca crescia uma casa. Era preciso haver uma solidariedade absoluta para essas 3 mil almas não diminuírem. É uma coisa intuitiva da coletividade. Outra coisa: lá era dois anos de seca e dois anos de chuva. Na seca...

Hamilton Octavio de Souza - Qual é a região?
Entrada da região do Conselheiro, Irará, recôncavo, começo do sertão, perto de Feira de Santana e de Alagoinha, mais de 20 Km. Naquele tempo gastava meio dia para ir para Feira de Santana ou Alagoinha a cavalo nas estradas terríveis que tínhamos. Hoje, vai em 15 minutos.

Hamilton Octavio de Souza - E sua família era de classe média?
Naquele tempo, que classe média? Minha família era chamada de rica. No nordeste não tem rico, tem remediado. Até o folclore cantava: “Você me chama de rico, mas rico é Benjamin. Na feira, Seu João Marinho, no Irará Seu Pompiu”. Meu avô. “Serrinha que é ponto grande, só se fala no coronel Nenenzinho.” Meu avô era chamado de rico até pelo folclore. O que é que ele tinha? Lá não tem latifúndio. Ele tinha uma fazendinha ainda dentro de Irará e outra perto. Hoje, para o que se chama de latifúndio, a fazenda dele era um roçado, mas era chamado de fazendeiro.

Neusa Santos - O que se chama de fazenda lá, na Bahia, aqui é chamado de chácara.
É gozado informar isso. Lá também, um dos maiores municípios do interior do país, em tudo quanto é canto todo mundo tem “duas tarefas” de terra, de seu fulano, de seu sicrano, de seu beltrano. Plantam mandioca, feijão, para comer e plantam fumo para vender no fim do ano. Isso no meu tempo, agora mudou a monocultura. Plantam fumo, o produto que ia exportar, que era para o dinheiro da festa, o dinheiro da compra grande e para tudo. Então, quando tinha seca, estava tudo esturricado. A loja de meu pai também estaria esturricada. Os negócios todos caíam 60%. Chegava a família para a compra anual. Essa loja foi onde eu frequentei a universidade mais sofisticada da minha vida, onde eu aprendi a falar a língua da roça. Eu não sei mais falar a língua da roça agora, mas é importante quando a gente conhece duas línguas, porque a capacidade de raciocínio fica tipificada. Todo mundo fala isso.

Hamilton Octavio de Souza - Você tinha tudo para ter virado coronel lá? O Renan Calheiros de Irará?
Não, não dava. Minha família se dividia no seguinte. Meu avô, 12 filhos, 10 vingaram. Naquele tempo, vingar 10 já era uma maravilha. 40% era comunista. Uma coisa que ninguém esperava que fosse aparecer naquele lugar. 40% era católico e uns ficavam lá e cá. E nós, crianças, assistíamos uma coisa maravilhosa: a discussão de todas essas correntes. O mundo sem televisão, sem luz elétrica, sem rádio, pouquíssimo rádio na cidade. Depois do jantar, na casa de meu avô, ficavam, como nós estamos aqui nesse prazeroso momento. As crianças não falam nada. Criança não se metia em conversa. Pode estar em qualquer lugar que ninguém liga, contanto que esteja quieto e calado. E na mesa se falava de tudo. Na mesa tinha um cara qualquer que tinha vindo do leste europeu para fazer alguma coisa no Brasil e que falava alguma coisa de português. Estava uma semana na mesa. Um comunista que estava viajando escondido de não sei aonde e que veio para fazer uma conferência na Faculdade de Direito de Salvador tava na mesa. O vaqueiro de meu avô – para ver como as coisas eram – tava na mesa. E, naquele universo, todo mundo tinha que prestar contas do mundo através da palavra. Em Irará, praticamente não havia dinheiro. Muita coisa era no escambo, mas é claro que dinheiro tinha. Mas a moeda importante que circulava no coração e no seio do povo era a PALAVRA ! A palavra era a riqueza!

Para ler a entrevista completa e outras matérias confira edição de fevereiro da revista Caros Amigos, já nas bancas, ou clique aqui e compre a versão digital da Caros Amigos.

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