7 de março de 2010

E agora, senador Demóstenes Torres? Vale a pena ler.

Elio Gaspari

 

            O senador Demóstenes Torres (DEM) é uma espécie de líder parlamentar da oposição às cotas para estimular a entrada de negros nas universidades públicas. O principal argumento contra essa iniciativa contesta sua legalidade, e o caso esta no Supremo Tribunal Federal, onde realizaram-se audiências públicas destinadas a enriquecer o debate.

 

            quarta-feira o senador Demóstenes foi ao STF, argumentou contra as cotas e disse o seguinte:

 

            "(Fala-se que) as negras foram estupradas no Brasil. (Fala-se que) a miscigenação deu-se no Brasil pelo estupro. Gilberto Freyre, que hoje é renegado, mostra que isso se deu de forma muito mais consensual".

 

            O senador precisa definir o que vem a ser "forma muito mais consensual" numa relação sexual entre um homem e uma mulher que, pela lei, podia ser açoitada, vendida e até mesmo separada dos filhos.

 

            Gilberto Freyre escreveu o seguinte:

 

            "Não há escravidão sem depravação sexual. É da essência mesma do regime".

 

            "O que a negra da senzala fez foi facilitar a depravação com sua docilidade de escrava: abrindo as pernas ao primeiro desejo do sinhô-moço. Desejo, não: ordem."

 

"Não eram as negras que iam esfregar-se pelas pernas dos adolescentes louros: estes é que no Sul dos Estados Unidos, como nos engenhos de cana do Brasil os filhos dos senhores, criavam-se desde pequenos para garanhões. (...) Imagine-se um país com os meninos armados de faca de ponta! Pois foi assim o Brasil do tempo da escravidão."

 

Demóstenes Torres disse mais:

 

"Todos nós sabemos que a África subsaariana forneceu escravos para o mundo antigo, para o mundo islâmico, para a Europa e para a América. Lamentavelmente. Não deveriam ter chegado aqui na condição de escravos. Mas chegaram. (...) Até principio do século 20, o escravo era o principal item de exportação da economia africana."

 

Nós, que, cara-pálida? Ao longo de três séculos, algo entre nove milhões e 12 milhões de africanos foram tirados de suas terras e trazidos para a América. O tráfico negreiro foi um empreendimento das metrópoles européias e de suas colônias americanas. Se a instituição fosse africana, os filhos brasileiros de escravos seriam trabalhadores livres.

 

No inicio do século 20 os escravos não eram o principal "item de exportação da economia africana". Àquela altura, o tráfico tornara-se economicamente irrelevante. Ademais, não existia "economia africana", pois o continente fora partilhado pelas potências européias. Demóstenes Torres estudou História com o professor de contabilidade de seu ex-correligionário José Roberto Arruda.

 

O senador exibiu um pedaço do nível intelectual mobilizado no combate às cotas.

 

 

 

* Publicado na Coluna do Elio Gaspari, no Jornal O Popular, no domingo, 7 de março de 2010, página 12 – Política.

 

 

 

            Possivelmente, o senador não leu o Navio Negreiro e Vozes d'África, de Castro Alves, que talvez esteja revolvendo-se em sua tumba.

 

Para não ser conivente com a "sabiduria estórica" do senador, vejamos algumas partes desses conhecidos poemas:

 

Navio Negreiro

 

"Por que foges assim, barco ligeiro?

Por que foges do pávido poeta?

Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira

Que semelha no mar — doudo cometa!

 

Albatroz!  Albatroz! águia do oceano,

Tu que dormes das nuvens entre as gazas,

Sacode as penas, Leviathan do espaço,

Albatroz!  Albatroz! dá-me estas asas.

 

II

 

 

Que importa do nauta o berço,

Donde é filho, qual seu lar?

Ama a cadência do verso

Que lhe ensina o velho mar!

Cantai! que a morte é divina!

Resvala o brigue à bolina

Como golfinho veloz.

Presa ao mastro da mezena

Saudosa bandeira acena

As vagas que deixa após.

 

Do Espanhol as cantilenas

Requebradas de langor,

Lembram as moças morenas,

As andaluzas em flor!

Da Itália o filho indolente

Canta Veneza dormente,

— Terra de amor e traição,

Ou do golfo no regaço

Relembra os versos de Tasso,

Junto às lavas do vulcão!

 

O Inglês — marinheiro frio,

Que ao nascer no mar se achou,

(Porque a Inglaterra é um navio,

Que Deus na Mancha ancorou),

Rijo entoa pátrias glórias,

Lembrando, orgulhoso, histórias

De Nelson e de Aboukir.. .

O Francês — predestinado —

Canta os louros do passado

E os loureiros do porvir!

 

Os marinheiros Helenos,

Que a vaga jônia criou,

Belos piratas morenos

Do mar que Ulisses cortou,

Homens que Fídias talhara,

Vão cantando em noite clara

Versos que Homero gemeu ...

Nautas de todas as plagas,

Vós sabeis achar nas vagas

As melodias do céu! ...

 

III

 

 

Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!

Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano

Como o teu mergulhar no brigue voador!

Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!

É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...

Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!

 

IV

 

 

Era um sonho dantesco... o tombadilho 

Que das luzernas avermelha o brilho.

Em sangue a se banhar.

Tinir de ferros... estalar de açoite... 

Legiões de homens negros como a noite,

Horrendos a dançar...

 

Negras mulheres, suspendendo às tetas 

Magras crianças, cujas bocas pretas 

Rega o sangue das mães: 

Outras moças, mas nuas e espantadas, 

No turbilhão de espectros arrastadas,

Em ânsia e mágoa vãs!

 

E ri-se a orquestra irônica, estridente...

E da ronda fantástica a serpente 

Faz doudas espirais ...

Se o velho arqueja, se no chão resvala, 

Ouvem-se gritos... o chicote estala.

E voam mais e mais...

 

Presa nos elos de uma só cadeia, 

A multidão faminta cambaleia,

E chora e dança ali!

Um de raiva delira, outro enlouquece, 

Outro, que martírios embrutece,

Cantando, geme e ri!

 

No entanto o capitão manda a manobra,

E após fitando o céu que se desdobra,

Tão puro sobre o mar,

Diz do fumo entre os densos nevoeiros:

"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!

Fazei-os mais dançar!..."

 

E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .

E da ronda fantástica a serpente

          Faz doudas espirais...

Qual um sonho dantesco as sombras voam!...

Gritos, ais, maldições, preces ressoam!

          E ri-se Satanás!... 

 

V

 

 

Senhor Deus dos desgraçados!

Dizei-me vós, Senhor Deus!

Se é loucura... se é verdade

Tanto horror perante os céus?!

Ó mar, por que não apagas

Co'a esponja de tuas vagas

De teu manto este borrão?...

Astros! noites! tempestades!

Rolai das imensidades!

Varrei os mares, tufão!

 

Quem são estes desgraçados

Que não encontram em vós

Mais que o rir calmo da turba

Que excita a fúria do algoz?

Quem são?   Se a estrela se cala,

Se a vaga à pressa resvala

Como um cúmplice fugaz,

Perante a noite confusa...

Dize-o tu, severa Musa,

Musa libérrima, audaz!...

 

São os filhos do deserto,

Onde a terra esposa a luz.

Onde vive em campo aberto

A tribo dos homens nus...

São os guerreiros ousados

Que com os tigres mosqueados

Combatem na solidão.

Ontem simples, fortes, bravos.

Hoje míseros escravos,

Sem luz, sem ar, sem razão. . .

 

São mulheres desgraçadas,

Como Agar o foi também.

Que sedentas, alquebradas,

De longe... bem longe vêm...

Trazendo com tíbios passos,

Filhos e algemas nos braços,

N'alma — lágrimas e fel...

Como Agar sofrendo tanto,

Que nem o leite de pranto

Têm que dar para Ismael.

 

Lá nas areias infindas,

Das palmeiras no país,

Nasceram crianças lindas,

Viveram moças gentis...

Passa um dia a caravana,

Quando a virgem na cabana

Cisma da noite nos véus ...

... Adeus, ó choça do monte,

... Adeus, palmeiras da fonte!...

... Adeus, amores... adeus!...

 

Depois, o areal extenso...

Depois, o oceano de pó.

Depois no horizonte imenso

Desertos... desertos só...

E a fome, o cansaço, a sede...

Ai! quanto infeliz que cede,

E cai p'ra não mais s'erguer!...

Vaga um lugar na cadeia,

Mas o chacal sobre a areia

Acha um corpo que roer.

 

Ontem a Serra Leoa,

A guerra, a caça ao leão,

O sono dormido à toa

Sob as tendas d'amplidão!

Hoje... o porão negro, fundo,

Infecto, apertado, imundo,

Tendo a peste por jaguar...

E o sono sempre cortado

Pelo arranco de um finado,

E o baque de um corpo ao mar...

 

Ontem plena liberdade,

A vontade por poder...

Hoje... cúm'lo de maldade,

Nem são livres p'ra morrer. .

Prende-os a mesma corrente

— Férrea, lúgubre serpente —

Nas roscas da escravidão.

E assim zombando da morte,

Dança a lúgubre coorte

Ao som do açoute... Irrisão!...

 

Senhor Deus dos desgraçados!

Dizei-me vós, Senhor Deus,

Se eu deliro... ou se é verdade

Tanto horror perante os céus?!...

Ó mar, por que não apagas

Co'a esponja de tuas vagas

Do teu manto este borrão?

Astros! noites! tempestades!

Rolai das imensidades!

Varrei os mares, tufão! ...

 

VI

 

 

Existe um povo que a bandeira empresta

P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...

E deixa-a transformar-se nessa festa

Em manto impuro de bacante fria!...

Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,

Que impudente na gávea tripudia?

Silêncio.  Musa... chora, e chora tanto

Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...

 

Auriverde pendão de minha terra,

Que a brisa do Brasil beija e balança,

Estandarte que a luz do sol encerra

E as promessas divinas da esperança...

Tu que, da liberdade após a guerra,

Foste hasteado dos heróis na lança

Antes te houvessem roto na batalha,

Que servires a um povo de mortalha!...

 

Fatalidade atroz que a mente esmaga!

Extingue nesta hora o brigue imundo

O trilho que Colombo abriu nas vagas,

Como um íris no pélago profundo!

Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga

Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!

Andrada! arranca esse pendão dos ares!

Colombo! fecha a porta dos teus mares!

 

Vozes d'África

 

Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?

Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes

Embuçado nos céus?

 

Há dois mil anos te mandei meu grito,

Que embalde desde então corre o infinito...

Onde estás, Senhor Deus?...

 

Qual Prometeu tu me amarraste um dia

Do deserto na rubra penedia

- Infinito: galé! ...

 

Por abutre - me deste o sol candente,

E a terra de Suez - foi a corrente

Que me ligaste ao pé...

O cavalo estafado do Beduíno

Sob a vergasta tomba ressupino

E morre no areal.

 

Minha garupa sangra, a dor poreja,

Quando o chicote do simoun dardeja

O teu braço eternal.

Minhas irmãs são belas, são ditosas...

Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas

Dos haréns do Sultão.

 

Ou no dorso dos brancos elefantes

Embala-se coberta de brilhantes

Nas plagas do Hindustão.

 

Por tenda tem os cimos do Himalaia...

Ganges amoroso beija a praia

Coberta de corais ...

A brisa de Misora o céu inflama;

 

E ela dorme nos templos do Deus Brama,

- Pagodes colossais...

A Europa é sempre Europa, a gloriosa! ...

A mulher deslumbrante e caprichosa,

Rainha e cortesã.

 

Artista - corta o mármor de Carrara;

Poetisa - tange os hinos de Ferrara,

No glorioso afã! ...

Sempre a láurea lhe cabe no litígio...

Ora uma c'roa, ora o barrete frígio

Enflora-lhe a cerviz.

Universo após ela - doudo amante

Segue cativo o passo delirante

Da grande meretriz.

 

 

Mas eu, Senhor!... Eu triste abandonada

Em meio das areias esgarrada,

Perdida marcho em vão!

Se choro... bebe o pranto a areia ardente;

talvez... p'ra que meu pranto, ó Deus clemente!

Não descubras no chão...

E nem tenho uma sombra de floresta...

Para cobrir-me nem um templo resta

No solo abrasador...

Quando subo às Pirâmides do Egito

Embalde aos quatro céus chorando grito:

 

"Abriga-me, Senhor!..."

 

Como o profeta em cinza a fronte envolve,

Velo a cabeça no areal que volve

O siroco feroz...

Quando eu passo no Saara amortalhada...

Ai! dizem: "Lá vai África embuçada

No seu branco albornoz. . . "

Nem vêem que o deserto é meu sudário,

Que o silêncio campeia solitário

Por sobre o peito meu.

 

Lá no solo onde o cardo apenas medra

Boceja a Esfinge colossal de pedra

Fitando o morno céu.

De Tebas nas colunas derrocadas

As cegonhas espiam debruçadas

O horizonte sem fim ...

Onde branqueia a caravana errante,

E o camelo monótono, arquejante

Que desce de Efraim

 

Não basta inda de dor, ó Deus terrível?!

É, pois, teu peito eterno, inexaurível

De vingança e rancor?...

E que é que fiz, Senhor? que torvo crime

Eu cometi jamais que assim me oprime

Teu gládio vingador?!

 

Foi depois do dilúvio... um viadante,

Negro, sombrio, pálido, arquejante,

Descia do Arará...

E eu disse ao peregrino fulminado:

"Cão! ... serás meu esposo bem-amado...

 

- Serei tua Eloá. . . "

 

Desde este dia o vento da desgraça

Por meus cabelos ululando passa

O anátema cruel.

As tribos erram do areal nas vagas,

E o Nômada faminto corta as plagas

No rápido corcel.

Vi a ciência desertar do Egito...

Vi meu povo seguir - Judeu maldito -

Trilho de perdição.

Depois vi minha prole desgraçada

Pelas garras d'Europa - arrebatada -

Amestrado falcão! ...

 

Cristo! embalde morreste sobre um monte

Teu sangue não lavou de minha fronte

A mancha original.

Ainda hoje são, por fado adverso,

Meus filhos - alimária do universo,

Eu - pasto universal...

 

Hoje em meu sangue a América se nutre

Condor que transformara-se em abutre,

Ave da escravidão,

Ela juntou-se às mais... irmã traidora

Qual de José os vis irmãos outrora

Venderam seu irmão.

 

Basta, Senhor! De teu potente braço

Role através dos astros e do espaço

Perdão p'ra os crimes meus!

Há dois mil anos eu soluço um grito...

escuta o brado meu lá no infinito,

Meu Deus! Senhor, meu Deus!!...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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