Sem as mulheres, os direitos não são humanos
Art. 1º: A mulher nasce livre e permanece igual ao homem em direitos. As distinções sociais só podem ter como fundamento a utilidade comum. Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. Olympe de Gouges, 1791.
Ainda que a idéia de afirmação de direitos para todas as pessoas nos pareça óbvia, é bom lembrar que a formulação de uma declaração desses direitos como inerentes a toda pessoa humana é bastante recente e tem história. Nem sempre todos os seres humanos foram considerados dignos de terem direitos respeitados. Basta lembrarmos a situação de escravidão protegida pelo Estado e pela Igreja, como norma, segundo os planos de Deus e digna de respeito. Até hoje há quem defenda ser legítimo que a polícia mate pessoas suspeitas, sem garantir-lhes o direito de que se expliquem e que sejam julgados pelos dispositivos da lei e não condenados a priori. Há também quem defenda a inferioridade racial ou que acredite que as pessoas com mais de 40 anos são improdutivas. Todos esses preconceitos produzem a negação de direitos. Até hoje também é difícil que se compreenda o sexo e a reprodução humana como campos de direitos, parte integrante, inalienável e inseparável do que hoje chamamos Direitos Humanos.
A proposição de um documento que afirmasse direitos universais para todos os seres humanos data de 1948. Trata-se da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Ainda que a palavra homem quisesse remeter a toda a humanidade - mulheres e homens de todas as raças, religiões, posição social - a própria formulação indicava a exclusão das mulheres como detentoras de direitos ao mesmo título que os homens. No entanto, já no século XVIII, com a Revolução Francesa e seu ideário de liberdade, igualdade e fraternidade, uma Carta de Direitos foi elaborada. Imediatamente, uma mulher fez ver que nossos direitos não estavam contemplados e propôs uma carta dos Direitos das Mulheres. Essa mulher, Olympe de Gouges, foi guilhotinada por haver ousado entender as mulheres como cidadãs às quais os princípios libertários da revolução deveriam ser aplicados.
Também a posição católica em relação aos Direitos Humanos tem história. Ao princípio, a Igreja opôs-se à idéia. Os direitos humanos eram identificados com o Iluminismo no campo filosófico e com as liberdades modernas. Tinham como seu fundamento a autonomia da pessoa, o indivíduo, senhor de si, de seus juízos e de suas decisões, devendo obedecer unicamente à sua consciência. A isso o catolicismo se opôs vigorosamente. Os Papas Pio IX e, depois, Leão XIII escreveram documentos condenando essas novas idéias. No correr do século XX, no entanto, o pensamento católico mudou, à medida que incorporou maior apreço pela liberdade e pela dignidade das pessoas. Porém, ainda que a doutrina católica tenha aprendido do liberalismo filosófico e das experiências históricas, a Igreja mantém uma profunda desconfiança em relação à afirmação da autonomia e dos direitos individuais. Essa desconfiança se materializa particularmente na negação dos direitos das mulheres.
No campo feminista, a noção de direitos humanos, ainda que assumida criticamente e reformulada, foi - e continua a ser - incorporada no discurso e na prática política das mulheres. O reconhecimento dos nossos direitos como direitos humanos conquistou espaço em esfera mundial, nas últimas décadas, como referência em documentos de conferências internacionais. Esse novo pensamento exigiu que se repensasse amplamente os direitos humanos. Muitos direitos específicos, cruciais para o bem-estar das mulheres, tiveram que ser identificados e trabalhados para combater injustiças diretamente relacionadas ao gênero. Tais direitos não podem ser reconhecidos como direitos humanos sem questionar profundamente tanto o próprio conceito quanto instituições que estão na base da organização de nossas sociedades: o Estado, o mercado capitalista, o aparato jurídico, a cultura, as religiões.
Assim, o campo dos direitos, tal como pensado pelo feminismo contemporâneo insere-se na luta política; não é dado, mas uma conquista, terreno de disputa e de conflito. Nele incluem-se os direitos econômicos, sociais e culturais, que contemplam também os direitos sexuais e os direitos reprodutivos, fundamentais à realização da cidadania, especialmente das mulheres. Esses direitos não se exercem na abstração, mas sobre a materialidade dos corpos e sobre a subjetividade de pessoas concretas. As profundas desigualdades causadas por uma iníqua distribuição dos bens de toda ordem são a negação prática dos Direitos Humanos. A apropriação dos corpos e corações pelas exigências do lucro a qualquer custo, assim como seu aprisionamento por normas e símbolos que cerceiam a liberdade e a autonomia das pessoas constituem-se em permanente violação dos direitos das pessoas e impedem a realização da democracia radical que queremos.
Como mulheres católicas, feministas, neste 10 de dezembro, proclamado pela ONU, em 1950, o Dia Internacional dos Direitos Humanos, reafirmamos que a exigência ética da construção de uma sociedade pluralista, justa e democrática supõe o reconhecimento de que a pobreza é incompatível com os Direitos Humanos; de que o sexo deve ser vivido com liberdade e ser consentido; de que a reprodução realiza-se como um direito, quando decidida livremente; de que só um Estado democrático e laico pode garantir o exercício real dos direitos humanos e a realização da cidadania de todos e, em particular, de todas.
fonte: Católicas pelo Direitos de Decidir
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