27 de junho de 2009

A cartografia das religiões de matrizes africanas

Ao som do canto e da batida dos atabaques, foi lançado oficialmente o projeto de Mapeamento de Casas de Religiões de Matrizes Africanas no Rio de Janeiro. A cerimônia aconteceu no Terreiro Ile Omiojuaro (Casa de Mãe Beata de Iemanjá) e cerca de 60 representantes de Candomblé e Umbanda prestigiaram o evento. A pesquisa é fruto das reivindicações de tradições africanas e só foi viabilizada por causa de uma parceria entre a PUC-RIO e a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). 

 
A pesquisa consiste no cadastramento das casas de todas as tradições afro-brasileira, solicitado à PUC-RIO, pelas lideranças religiosas de matriz africana para quantificar as comunidades religiosas existentes no Estado do Rio de Janeiro, bem como onde estão localizadas.  
 
"O estudo tem o objetivo de contribuir para o fortalecimento das identidades religiosas, assim como a garantia do seu exercício; o enfretamento da intolerância religiosa, através do diálogo inter-religioso; a visibilidade e a legalização dos terreiros", explica Sônia Maria Giaconimi, Coordenadora Geral da Pesquisa pela PUC-Rio. 
 
Para tanto, foi construído o Conselho Griot, composto por quatorze pessoas interessadas e de respeito no meio espiritual, entre pais e mães-de-santo, que planejaram e aprovaram coletivamente todas as decisões da pesquisa.  
"Queremos deixar claro que a demanda pela cartografia partiu do próprio povo de matriz africana, atendendo um desejo muito mais nosso do que da academia, para não ficarmos limitados apenas aos dados oficias divulgados por órgãos públicos. O diferencial neste levantamento é o processo decisório ser de responsabilidade das próprias lideranças que na hora definem como as tradições serão representadas", salientou mãe-de-santo Flávia Pinto, representante da nação de umbanda e coordenadora de campo da pesquisa. 
 
Como vimos, para os seguidores das religiões de matriz africana, a melhor resposta desta iniciativa é a reafirmação de suas raízes e a visibilidade das suas tradições. Atualmente, as estatísticas brasileiras não expressam a real presença do chamado povo de santo, dizem eles: no Rio de Janeiro, segundo as estatísticas oficiais, há em torno de sete mil terreiros, mas acredita-se que o número seja maior:  
 
"Precisamos do quantitativo para poder construir de fato políticas públicas sólidas e mecanismos de assistência aos terreiros. Só a partir desse censo, poderemos solicitar ao IBGE a inclusão das tradições em seu questionário no rol das religiões, para não sermos mais equiparadas no campo 'outros', o que contribui para a nossa invisibilidade sócio-política", ressalta Adailton Moreira, Baba Egbé do Ile Omiojuaro e coordenador de campo da pesquisa. 
 
Ivanir dos Santos, da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa adverte: "Cabe aos seguidores da tradição também se assumirem no censo brasileiro e não mais se esconderem entre os campos 'outros', ou mesmo 'católicos' apresentados pelos formulários".
 
A pesquisa prevê a construção de um banco de dados que permitirá que cada terreiro seja mapeado com a tecnologia Global Positioning System (GPS). Para este levantamento, há seis meses foi fechada uma parceria com o Núcleo Interdisciplinar de Meio Ambiente (NIMA) e o Núcleo Interdisciplinar de Reflexão e Memória afro-descendente (NIREMA) da PUC.  
 
O mapeamento se realizará na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro e São Gonçalo. Os dados serão coletados mediante preenchimento de questionários a serem preenchidos pelas próprias lideranças das comunidades religiosas afro-brasileiras: "Ou seja, a pesquisa é auto-declaratória e parte do testemunho de cada chefe de terreiro", explica Sônia. Além disso, serão feitos registros fotográficos da fachada das casas visitadas. As informações coletadas ficarão armazenadas num banco de dados georreferenciado a ser concebido e alimentado pelo NIMA.  
 
Entre as preocupações manifestadas pelas lideranças na discussão do mapeamento, está o cadastramento de comunidades religiosas que fogem do padrão-terreiro: "Como chegar às macumbas de beco, por exemplo, onde pais de santos que não possuem terreiros próprios realizam seus rituais e sessões pelas vielas do morro?", questionou Ivanir dos Santos. E mais, pesquisadores já discutem alguns desafios que irão encontrar pela frente após a identificação de todas as comunidades: "Preocupa-me, ainda, a caducidade desse trabalho, ou seja, o comprometimento em atualizarmos os dados que conseguirmos, para que não sejam perdidos tão logo inseridos. Porque o mundo dos templos religiosos está vivo e tudo que é vivo se move, transforma-se. O trabalho de um ano pode ser insuficiente no ano seguinte".
 
Para Márcia de Oxum, todas estas dificuldades são pequenas em vista da conquista que o projeto traz: "Como religiosa, entendo que antes nós não tínhamos nada e hoje demos um grande passo. Esta conquista deve fazer parte de uma conta de somar, não é dividir, muito menos subtrair com os problemas que vão aparecer. Que venha a Puc e outros parceiros para nos ajudar. E que nós, líderes religiosos, arregacemos as mangas. Porque se nós não temos reconhecimento, nós não temos identidade. E um povo sem identidade não é ninguém".      
 
O movimento para publicizar a discussão e reduzir a discriminação enfrentada pela comunidade africana também tem o apoio explicito do governo: "As religiões de matrizes africanas enfrentam um momento de vulnerabilidade muito intensa. Com a sua invisibilidade total, elas experimentam uma agressão dia a dia. O crescimento de alguma seita religiosa, como a dos Pentecostais, ofende diretamente e diariamente a quem professa as religiões de matrizes africanas. Isto não tem acordo em lugar algum, seja na letra da lei, seja na posição do governo brasileiro", advertiu Elói Ferreira, ministro adjunto da Seppir. 
 
Ao final da apresentação, Adailton Moreira cantou um ponto de reverência aos orixás e pediu a proteção dos deuses para o êxito da iniciativa. "Este trabalho não é nenhuma novidade, afinal está rede sempre existiu. Nós só estamos fortalecendo a comunidade, através de resistência ancestral e com exemplos de luta de outras casas, para nos tornamos visíveis, utilizando ferramentas que não tínhamos há 30 anos como a cartilha de intolerância religiosa que hoje nos permite procurar as instâncias certas para lutarmos contra a violação de direito", enfatiza.
 
Ainda como parte do ritual de encerramento e de costume na tradição, a Ialorixá Mãe Beata de Iyemoja abençoou os presentes: "Agradeço pelo dia singular na história das religiões afro-brasileiras e lutaremos no que diz respeito à valorização da cultura, bem como o reconhecimento do segmento. Hoje é um dia muito auspicioso para as tradições que fazem parte deste segmento e de nossa fé. Afinal, é a vez de o meu povo dizer quem somos, de onde viemos e qual é o nosso papel aqui".  
 
por Vanessa Campanário
Fonte: Instituto de Estudos da Religião - www.iser.org.br
 

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